Publicamos
o posfácio do Papa Francisco ao livro "La tessitura del mondo", um
diálogo multifacetado sobre a narração como caminho para a salvação, publicado
pelas editoras Lev e Salani. Organizado por Andrea Monda, o livro está à venda
a partir de hoje (26/05) e reúne as vozes de grandes protagonistas da cultura.
O texto inédito do Papa será publicado na íntegra pelos jornais Avvenire e
Domani, assim como pela mídia do Vaticano
PAPA FRANCISCO
«As
histórias que contamos, recontamos e transmitimos uns aos outros são tendas sob
as quais nos reunimos, estandartes a seguir em batalha, cordas indestrutíveis
para ligar os vivos e os mortos, e a trama destas vastas teias ao longo dos
séculos e culturas ligam-nos fortemente uns aos outros e à história,
guiando-nos através das gerações». Assim escreve Donna Tartt depois de ter lido
este volume que reúne as reflexões de 44 entre escritores, artistas, teólogos e
jornalistas sobre o tema da narração. A romancista norte-americana compreende perfeitamente
um dos pontos em que muitos dos autores deste livro convergem: o conto como um
“tecido”, feito de “cordas indestrutíveis” que conecta tudo e todos, presente e
passado, e permite que nos abramos ao futuro com sentimentos de confiança e
esperança.
Este aspeto do textum (em latim
para indicar tecido, em italiano testo [em português texto])
estava no centro da minha Mensagem para o Dia Mundial das Comunicações Sociais
para o ano de 2020, que foi como a centelha que gerou todas as outras reflexões
aqui reunidas. Com efeito, de fevereiro a outubro de 2020 estes textos
“provocados” pela leitura daquela minha Mensagem foram publicados nas páginas
de L’Osservatore Romano. Foi-me então pedido para acrescentar uma
conclusão no final desta rica e bela série que já tinha lido com grande prazer
à medida que se desenrolava ao longo dos meses. Então aceitei com prazer,
contanto que não seja considerado “final”, em parte porque, como diz Frodo, o
protagonista de O Senhor dos Anéis de Tolkien, «os contos
nunca acabam», e também porque um aspeto muito bonito deste livro é
precisamente o sentido de abertura, de circularidade e de diálogo.
Antes de voltar ao tema do “conteúdo”, gostaria de
me deter brevemente no “método” deste volume: no início há uma mensagem que é
lançada; esta mensagem é partilhada e oferecida à atenção de várias pessoas que
se deixam interpelar e enriquecem aquela mensagem com a própria contribuição; o
autor da mensagem lê todas estas contribuições e relança uma nova reflexão mais
rica do que a inicial, graças à contribuição de todos; por fim, o leitor deste
livro entrará dentro deste diálogo e prossegui-lo-á na sua vida quotidiana. Eis
as “tendas sob as quais se reunir” de que Donna Tartt fala, eis o
entrelaçamento que “nos une fortemente uns aos outros” também através das
gerações.
Tudo isto diz muito. E diz em particular que nas
histórias o que importa é obviamente o dizer, mas talvez ainda mais o ouvir.
Este livro é o relato de um diálogo que não termina na última página e,
enquanto diálogo, tem o seu coração na escuta. Também silenciosa. Nestas
páginas sobre a narração, a presença do silêncio é sentida fortemente. Deste
ponto de vista, é importante que haja também um ensaio, refiro-me ao texto “Tu
parli anche quando taci” [Tu falas também quando ficas em silêncio] de Massimo
Grilli, dedicado diretamente ao silêncio. Quase um contraponto, um contracanto,
tão essencial como o tema principal interpretado pelo resto da orquestra.
Palavra e silêncio, juntos.
E aqui quero voltar aos aspetos de conteúdo para
evidenciar, entre os muitos possíveis (a coletânea é bela precisamente devido à
liberdade e à variedade de abordagens e pontos de vista), três temas que me
parecem ser os mais recorrentes: o primeiro já sublinhei, a narração de
histórias como “tecer”; o segundo está escondido dentro da menção do silêncio,
e é o tema do “mistério”; o terceiro é o tema da “compaixão”.
No primeiro, como já disse, o tecer, é
talvez o aspeto em que a maioria dos autores se concentra, alguns salientando o
papel das mulheres, como Marcelo Figueroa, outros destacando a “maleabilidade”
da tecelagem das histórias «capaz de concentrar em si situações sempre novas
e novos destinatários» (J. P. Sonnet), outros como Antonella Lumini
refletiram sobre a consistência “magmática” das histórias que contudo “subsistem”,
possuem uma “propriedade” e uma tendência, «como as águas na nascente de um rio
que depois correm para o mar».
O tema do mistério, declinado como
sentido do limite, mas também como “magia” que intervém no momento da
inspiração poética, está presente desde o primeiro texto, o do arquiteto Renzo
Piano, para quem «nós, seres humanos, estamos todos unidos por esta consciência
de um mistério que nos sobrevoa, nos supera. Isto também tem a ver com poesia».
«Aquilo que não sei, sei cantá-lo» diz uma canção do cantor-compositor romano
Francesco De Gregori entrevistado na coletânea, e os artistas, acrescenta
Judith Thurman, com profunda intuição, «devem escrever não tanto sobre o que
sabem, quanto sobre o que não sabiam que sabem até quando não o resgataram da
obscuridade».
O sentido do mistério abre ao transcendente, a uma
dimensão inconfundivelmente espiritual, religiosa. Donna Tartt observa que
«talvez mais propriamente, as histórias são lonas para velas que içamos a fim
de capturar um respiro do divino. Os pensamentos de outras pessoas adquirem uma
vida estranha em nós, razão pela qual a literatura é a arte mais espiritual de
todas e certamente a mais transformadora. Como nenhuma outra forma de
comunicar, uma história pode mudar a nossa maneira de pensar, no bem ou no mal
[...] as culturas antigas e modernas sempre consideraram as histórias mágicas –
e perigosas – por uma razão: porque se pode ouvir uma história e, no seu final,
ser uma pessoa totalmente diferente».
E isto leva ao terceiro aspeto, a compaixão,
também presente em vários textos recolhidos no volume. Em particular, a
escritora Marylinne Robinson, recordando as histórias e canções que a sua mãe
costumava ler-lhe, reflete sobre a compaixão, que no seu sentido mais amplo
segundo ela é «na vida da alma, equivalente humano da graça divina» e
acrescenta mais adiante: «a história mostra como as narrações são importantes
para as comunidades». Assim a literatura está ligada à compaixão e isto leva à
transformação que ocorre em cada experiência de escrita e leitura, e acontece
de forma ambígua, ambivalente e, portanto, arriscada: contar histórias também
pode desencadear uma força negativa, manipuladora e destrutiva.
A compaixão, como frequentemente repito nos meus
discursos, é uma das três caraterísticas do estilo de Deus, juntamente com a
proximidade e a ternura. É uma força poderosa, e não pode ser reduzida apenas a
um aspeto interior, íntimo, porque tem também uma dimensão evidentemente
pública, social, motivo pelo qual a história se revela como uma força de memória,
por conseguinte, guardiã do passado, mas também, precisamente por esta razão,
um fermento de transformação para o futuro. A compaixão encontra o seu ícone
mais representativo na figura do Bom Samaritano narrada no capítulo 10 do
Evangelho de Lucas. Aquele homem tem compaixão pelo ferido e oferece-lhe não só
cuidados e cura, mas com eles outro relato da sua vida que com o seu gesto
“redimiu das trevas”. A compaixão transforma a vida dos dois protagonistas, e
isto aplica-se a cada pessoa e a cada comunidade.
Esta dimensão, podemos dizer “política” da
narrativa está também muito presente nos 44 textos do livro. Estou a pensar na
reflexão de Alessandro Zaccuri que fala de Jesus como um “Messias narrador”,
aparentemente desarmado, mas na realidade dotado da poderosa arma da narração.
Assim o romancista irlandês Collum McCann vê a narração como «um dos meios mais
poderosos que temos para mudar o nosso mundo. [...] A narração é a nossa grande
democracia. É aquilo a que todos nós temos acesso. Contamos as nossas histórias
porque precisamos de ser ouvidos. E nós ouvimos histórias porque precisamos de
pertencer. A narração transcende as fronteiras. Supera os confins. Despedaça
estereótipos. E dá-nos acesso à floração total do coração humano». Aquilo ao
que McCann alude é a conclusão a que Daniel Mendelsohn chega quando afirma que
«a palavra é uma ponte [...] através da narração de histórias podemos reduzir a
distância que nos separa e penso que isto hoje é necessário como nunca».
Mendelsohn refere-se à época em que estes textos foram escritos, a sua
contribuição é de abril de 2020, e aponta para uma referência literária
exata: Decameron de Boccaccio, ambientado numa época de peste.
Também este livro, com os seus 44 textos, foi composto numa época de pandemia,
e sente-se a importância, a urgência de regressar à atividade mais antiga e
humana: a arte de contar histórias, ou seja, de construir pontes que possam
«interligar os vivos e os mortos» para nos guiar, através dos séculos e das
gerações, rumo a um futuro a construir, a tecer, juntos.
Cidade do Vaticano, 20 de março de 2021
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