Da fé e do “sentimento” da presença real, deve brotar espontaneamente a reverência e, até, a ternura para com Jesus sacramentado. Este é um sentimento tão delicado e pessoal, que só falando dele nos arriscamos a estragá-lo. São Francisco de Assis teve o coração cheio desses sentimentos de reverência e ternura. O Poverello enternece-se diante de Jesus sacramentado, como em Greccio se enternecia diante do Menino de Belém: ele o vê assim, confiado aos homens, tão inerme, tão humilde."
Fr. Raniero Cantalamessa, OFMCap.
A EUCARISTIA, PRESENÇA REAL DO SENHOR
Quarta pregação, Quaresma de 2022
Depois das catequeses mistagógicas sobre as três
partes da Missa ‒ liturgia da palavra, consagração e comunhão ‒ meditemos hoje
a Eucaristia como presença real de Cristo na Igreja.
Como enfrentar um mistério tão alto e tão
inacessível? Vêm-nos logo à memória as variadíssimas teorias e discussões
existentes acerca disso, as divergências entre católicos e protestantes, entre
latinos e ortodoxos, que enchiam os livros por onde estudamos teologia, nós que
temos uma certa idade e somos tentados a pensar que é impossível dizer ainda
alguma coisa acerca deste mistério que possa edificar a nossa fé e aquecer o
nosso coração, sem desembocarmos inevitavelmente na polêmica interconfessional.
Mas esta é precisamente a obra maravilhosa que o
Espírito Santo vai realizando nos nossos dias entre todos os cristãos. Ele
impele-nos a reconhecer quanta parte tinham, nas nossas disputas eucarísticas,
a presunção humana de poder encerrar o mistério numa teoria ou, até, numa
palavra, como também a vontade de prevalecer sobre o adversário. Impele-nos a
arrependermo-nos por termos reduzido o supremo penhor de amor e de unidade, que
o Senhor nos deixou, a um objeto privilegiado das nossas altercações.
A via do ecumenismo eucarístico é a via do
reconhecimento recíproco, a via cristã da ágape, da partilha e das
diferenças reconciliadas de que fala nosso Santo Padre. Não se trata de passar
por cima das divergências reais, ou de renunciar a alguma coisa da doutrina
católica autêntica. Trata-se, antes, de reunir todos os aspectos positivos e os
valores autênticos que existem em cada uma das tradições, de modo a constituir
um “montão” de verdades comuns que comece a atrair-nos para a unidade.
É incrível como algumas posições católicas,
ortodoxas e protestantes, acerca da presença real, se tornam divergentes entre
si e destrutivas, quando contrapostas e vistas em alternativa entre si, ao
passo que se mostram maravilhosamente convergentes, se mantidas juntas em
equilíbrio. É a síntese que devemos começar a fazer; devemos passar, como por
um crivo, as grandes tradições cristãs, para colher de cada uma, como nos
exorta o Apóstolo, “aquilo que é bom” (cf. 1Ts 5,21). Esta é a única maneira
pela qual podemos esperar um dia sentar à mesma mesa.
Uma presença real, mas escondida: a tradição latina
Vamos agora examinar, com este espírito, as três
principais tradições eucarísticas – a latina, a ortodoxa e a protestante – para
nos edificarmos com as riquezas de cada uma e reunir a todas no tesouro comum
da Igreja. A ideia que, no final, iremos ter do mistério da presença real
ficará mais rica e mais viva. Na visão da teoria latina, o centro indiscutível
da ação eucarística, da qual deriva a presença real de Cristo, é o momento da
consagração. Nele, Jesus age e fala em primeira pessoa. A teologia latina
recolhe, nisto, todo um filão da tradição patrística. Santo Ambrósio escreve:
Este pão é pão antes das palavras sacramentais;
mas, ao intervir a consagração, o pão torna-se carne de Cristo... Com que
palavras se fez a consagração, e de quem são essas palavras? Do Senhor Jesus!
Todas as coisas que se dizem antes desse momento são ditas pelo sacerdote que
louva a Deus, reza pelo povo, pelos reis e pelos outros; mas quando se chega ao
momento de realizar o venerável sacramento, o sacerdote já não utiliza palavras
suas, mas de Cristo. É, pois, a palavra que opera (conficit) o
sacramento... Vês quanto é eficaz (operatorius) a fala de Cristo? Antes
da consagração não havia corpo de Cristo, mas depois da consagração, eu digo-te
que já existe o corpo de Cristo. Ele diz e a coisa acontece, Ele ordena e a
coisa se afirma” (Sl 33,9)[1].
Podemos falar, na visão latina, de um realismo cristológico. “Cristológico”, porque toda a atenção aqui se volta para Cristo, visto quer na sua existência histórica e encarnada, quer na de Ressuscitado; Cristo é tanto o objeto como o sujeito da Eucaristia, isto é, Aquele que é realizado na Eucaristia e Aquele que realiza a Eucaristia. “Realismo”, porque este Jesus não é visto presente no altar simplesmente num sinal ou num símbolo, mas em verdade e com a sua realidade. Esse realismo cristológico é visível, para darmos um exemplo, no cântico Ave verum: “Salve, corpo verdadeiro, nascido de Maria Virgem, que realmente sofreste e foste imolado na cruz pelos homens, e de cujo Lado aberto brotou sangue e água...”.
Seguidamente, o Concílio de Trento definiu melhor
este modo de conceber a presença real, usando três advérbios: vere,
realiter, substantialiter. Jesus está presente verdadeiramente, não só em
imagem, ou em figura; está presente realmente, não só subjetivamente, para a fé
dos crentes; está presente substancialmente, ou seja, segundo a sua realidade
profunda que é invisível aos sentidos, e não segundo as aparências que
continuam a ser as do pão e do vinho.
Poderia haver o perigo, é verdade, de se cair num
“cru” realismo, ou num realismo exagerado, mas existe na Igreja o remédio para
este perigo. Santo Agostinho esclareceu, de uma vez para sempre, que a presença
de Jesus acontece “in sacramento”. Não é, por outras palavras, uma
presença física, mas sacramental, mediada por sinais que são, precisamente, o
pão e o vinho. Neste caso, porém, o sinal não exclui a realidade, mas torna-a
presente, no único modo com que Cristo ressuscitado que “vive no Espírito” (1Pd
3,18) pode tornar-Se presente entre nós, enquanto vivemos ainda no corpo.
Santo Tomás de Aquino – o outro grande artífice da
espiritualidade eucarística ocidental, juntamente com Santo Ambrósio e Santo
Agostinho – diz a mesma coisa, ao falar de uma presença de Cristo “segundo a
substância” sob as espécies do pão e do vinho[2]. De fato, dizer que Jesus se torna
presente na Eucaristia com a sua substância, quer dizer que Se torna presente
com a sua realidade verdadeira e profunda, que pode ser compreendida só
mediante a fé. No hino Adoro te devote, que reflete de perto o
pensamento de Tomás de Aquino e que serviu mais do que muitos livros para
moldar a piedade eucarística latina, diz-se: “Os olhos, o tato, o gosto, tudo
aqui perde valor; fica só a fé na tua palavra”: Visus tactus gustus in
te fallitur ‒ sed auditui solo tuto creditur”.
Cristo está, por isso, presente na Eucaristia num
modo único que não tem correspondente noutro lugar. Nenhum adjetivo, por si só,
é suficiente para descrever essa presença; nem sequer o adjetivo “real”. Real
vem de res (coisa) e significa como uma coisa ou objeto. Ora,
Jesus não está presente na Eucaristia como uma “coisa” ou um objeto, mas como
uma pessoa. Se se quer atribuir um nome a esta presença, seria melhor
chamar-lhe presença “eucarística”, porque se realiza somente na Eucaristia.
A ação do Espírito Santo: a tradição ortodoxa
A teologia latina apresenta muitas riquezas, mas
não esgota – nem poderia fazê-lo – o mistério. Faltou-lhe, pelo menos no
passado, o devido relevo ao Espírito Santo, que também é essencial para
compreender a Eucaristia. Eis então que nos voltamos para o Oriente, para
interrogar a tradição ortodoxa, com uma disposição, todavia, bem diferente da
de outrora: já não preocupados com as diferenças, mas felizes pelo complemento
que ela traz à nossa visão latina.
Com efeito, na tradição ortodoxa é posta no devido
relevo a ação do Espírito Santo na celebração eucarística. De resto, este
cotejo já produziu os seus frutos, depois do Concílio Vaticano II. Até então,
no Cânon Romano da Missa, a única menção do Espírito Santo, incidentalmente,
era a da doxologia final: “Por Cristo, com Cristo, em Cristo... na unidade do
Espírito Santo...”. Pelo contrário, agora todos os novos cânones trazem uma
dupla invocação do Espírito Santo: uma sobre os dons, antes da consagração, e
outra sobre a Igreja, depois da consagração.
As liturgias orientais atribuíram sempre a
realização da presença real de Cristo no altar a uma operação especial do
Espírito Santo. Na anáfora dita de São Tiago, em uso na Igreja antioquena, o
Espírito Santo é invocado com estas palavras:
Envia sobre nós e sobre estes santos dons apresentados, o teu santíssimo Espírito, Senhor e dador de vida, que está sentado contigo, Deus e Pai, e com o teu único Filho. Ele reina consubstancial e coeterno; falou na Lei e nos profetas e no Novo Testamento; desceu, sob forma de pomba, sobre Nosso Senhor Jesus Cristo no rio Jordão e repousou sobre Ele; desceu sobre os santos apóstolos, no dia de Pentecostes, sob forma de línguas de fogo. Envia esse teu Espírito três vezes santo, Senhor, sobre nós e sobre estes santos dons apresentados, para que, pela sua vinda, santa, boa e gloriosa, santifique este pão e faça dele o santo corpo de Cristo (Amém), santifique este cálice e faça dele o sangue precioso de Cristo (Amém).
Há aqui muito mais do que um simples acréscimo da
invocação do Espírito Santo. Há um olhar amplo e penetrante em toda a História
da Salvação que ajuda a descobrir uma dimensão nova do mistério eucarístico.
Partindo das palavras do símbolo niceno-constantinopolitano que definem o
Espírito Santo “Senhor”, e “Aquele que dá a vida”, “que falou pelos profetas”,
amplia-se a perspectiva até traçar uma verdadeira e própria “história” do
Espírito Santo.
A Eucaristia leva a cumprimento esta série de
intervenções prodigiosas. O Espírito Santo que na Páscoa irrompeu no sepulcro e
“tocando” no corpo inanimado de Jesus, O fez reviver, repete na Eucaristia este
prodígio. Ele vem no sangue e no vinho que estão mortos e dá-lhes a vida, faz
deles o corpo e o sangue vivos do Redentor. Verdadeiramente – como disse o
próprio Jesus, falando da Eucaristia – “é o Espírito que dá a vida” (Jo 6,63).
Um grande representante da tradição eucarística oriental, Teodoro de
Mopsuéstia, escreve:
Em virtude da ação litúrgica, o nosso Senhor como
que ressuscita dos mortos e espalha a sua graça sobre todos nós, pela vinda do
Espírito Santo... Quando o pontífice declara que este pão e este vinho são o
corpo e o sangue de Cristo, afirma que se tornaram tais pelo contacto do
Espírito Santo. Aconteceu assim com o corpo natural de Cristo, quando recebeu o
Espírito Santo e a sua unção. Nesse momento, ao sobrevir o Espírito Santo, nós
cremos que o pão e o vinho recebem uma espécie de unção de graça. E a partir
daí acreditamos que eles são o corpo e o sangue de Cristo, imortais,
incorruptíveis, impassíveis e imutáveis por natureza, como o próprio corpo de
Cristo na ressurreição[3].
É importante, no entanto, levar em conta uma coisa
‒ e aqui vemos como até a tradição latina tem algo a oferecer aos irmãos
ortodoxos. O Espírito Santo não age separadamente de Jesus, mas dentro da
palavra de Jesus. D’ele disse Jesus: “Não falará em seu nome, mas dirá o que
escutou... O Espírito da Verdade manifestará a minha glória porque vai receber
daquilo que é meu e vo-lo interpretará” (Jo 16,13-14). É por isso que não se
deve separar as palavras de Jesus (“Isto é o meu corpo”) das palavras da epiclese
(“O Espírito Santo santifique estes dons para que se convertam no corpo e e
sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo”).
O apelo à unidade, para os católicos e os irmãos
ortodoxos, vem da própria profundidade do mistério eucarístico. Mesmo que, pela
natureza das coisas, a recordação da instituição e a invocação do Espírito
Santo aconteçam em momentos distintos (o homem não pode exprimir o mistério num
só instante), a sua ação, porém, está ligada. A eficácia vem certamente do
Espírito (não do sacerdote, nem da Igreja), mas essa eficácia exerce-se dentro
da palavra de Cristo e através dela. A eficácia que torna presente Jesus sobre
o altar não vem – já o disse – da Igreja, mas – acrescento – não acontece sem a
Igreja. Ela é o instrumento vivo, através do qual e juntamente com o qual o
Espírito opera. Acontece, para a vinda de Jesus sobre o Altar, como para a
vinda final na glória: “O Espírito e a Esposa (a Igreja) ‘dizem’ a Jesus:
‘Vem!’” (Ap 22,17). E ele vem!
A importância da fé: a espiritualidade protestante
A tradição latina colocou em evidência “quem” está
presente na Eucaristia, Cristo; a tradição ortodoxa colocou em evidência “por
quem” é operada a sua presença, pelo Espírito Santo; a teologia protestante
coloca em evidência “sobre quem” opera essa presença; por outras palavras, sob
que condições o sacramento opera, de fato, em quem o recebe, o que significa.
Estas condições são diversas, mas resumem-se numa só palavra: a fé.
Não vamos deter-nos já nas consequências negativas, derivadas, em certos períodos, do princípio protestante segundo o qual os sacramentos não são senão “sinais da fé”. Ultrapassando os mal-entendidos e a polêmica, consideramos que este enérgico chamado à fé é salutar precisamente para salvar o sacramento e não deixá-lo cair ao nível das “boas obras”, ou a algo que age um pouco mecânica e magicamente, quase sem o homem saber. Trata-se, no fundo, de descobrir o significado profundo daquela exclamação que a liturgia faz ressoar no final da consagração e, outrora, recordemo-lo, estava inserida inclusive no centro da fórmula da consagração, como que a sublinhar que a fé é parte essencial do mistério: Mysterium fidei, mistério da fé!
A fé não “faz”, apenas “recebe” o sacramento. Só a
palavra de Cristo repetida pela Igreja e tornada eficaz pelo Espírito Santo
“faz” o sacramento. Mas que aproveitaria um sacramento “feito”, mas não
“recebido”? A propósito da Encarnação, homens como Orígenes, Santo Agostinho,
São Bernardo, disseram: “Que me aproveita a mim que Cristo tenha nascido uma
vez de Maria em Belém, se não nasce também, pela fé, no meu coração?”. A mesma
coisa se deve dizer também da Eucaristia: que me aproveita a mim que Cristo
esteja realmente presente sobre o altar, se Ele não está presente para mim? Já
no tempo em que Jesus estava presente sobre a terra, a fé era precisa; caso
contrário – como Ele próprio tantas vezes repetiu no Evangelho –, a sua
presença não serviria para nada, senão para condenação: “Ai de ti, Corazim, ai
de ti, Cafarnaum!”.
A fé é necessária para que a presença de Jesus na
Eucaristia seja, não só “real”, mas também “pessoal”, isto é, de pessoa para
pessoa. Uma coisa é “estar”, e outra “estar presente”. A presença supõe alguém
que está presente e alguém diante do qual está presente; supõe comunicação
recíproca, diálogo entre duas pessoas livres, que tomam conhecimento uma da
outra. Por conseguinte, é muito mais do que a simples presença num certo lugar.
Esta dimensão subjetiva e existencial da presença eucarística não anula a
presença objetiva que precede a fé do homem, antes a supõe e valoriza. Lutero,
que exaltou tanto o papel da fé, é também um daqueles que sustentou com grande
vigor a doutrina da presença real de Cristo no sacramento do altar. No decurso
de um debate com outros Reformadores acerca deste tema, ele afirmou:
Não posso entender as palavras “Isto é o meu corpo”,
diferentemente de como soam. Toca então aos outros demonstrar que onde a
palavra diz: “Isto é o meu corpo”, o corpo de Deus não está lá. Não quero ouvir
explicações baseadas na razão. Perante palavras tão claras, não admito
perguntas; rejeito o raciocínio e a sã razão humana. Demonstrações materiais,
argumentações geométricas: tudo rejeito completamente. Deus está acima de
qualquer matemática e é preciso adorar com espanto a Palavra de Deus[4].
O rápido olhar que lançamos sobre a riqueza das
diversas tradições cristãs foi suficiente para nos fazer entrever que dom
imenso se perspectiva na Igreja, quando as várias confissões cristãs decidem
colocar em comum os seus bens espirituais, como faziam os primeiros cristãos,
dos quais se dizia que “colocavam em comum todas as coisas” (At 2,44). É esta a
ágape maior, a dimensão de toda a Igreja, que o Senhor coloca no nosso coração
para desejarmos ver, para a alegria do Pai comum e o fortalecimento da sua
Igreja.
Sentimento de presença
Chegamos ao final da nossa breve peregrinação
eucarística através das várias confissões cristãs. Recolhemos também nós alguns
cestos de fragmentos que sobraram da grande multiplicação dos pães da Igreja.
Mas não podemos terminar aqui a nossa meditação sobre o mistério da presença
real. Seria como ter recolhido os fragmentos e não comê-los. A fé na presença
real é uma grande coisa, mas não nos basta; pelo menos a fé entendida numa
certa maneira. Não basta ter uma ideia exata, profunda, teologicamente perfeita
da presença real de Jesus na Eucaristia. Quantos, entre os teólogos, sabem tudo
sobre este mistério, mas não conhecem a presença real! Porque só “conhece”, em
sentido bíblico, uma coisa, quem faz a experiência dessa mesma coisa. Conhece
verdadeiramente o fogo só quem, pelo menos uma vez, foi atingido por uma chama
e teve de se afastar velozmente para não se queimar.
São Gregório de Nissa deixou-nos uma expressão
estupenda para indicar este mais alto nível de fé; fala de “um sentimento de
presença”[5] que se tem quando alguém é atingido pela presença de Deus, quando
tem uma certa percepção (não só uma ideia) de que Ele está presente. Não se
trata de uma percepção natural; é fruto de uma graça que opera como que uma
ruptura de nível, um salto de qualidade.
Existe uma analogia muito grande com aquilo que
acontecia quando, depois da Ressurreição, Jesus se deixava conhecer por alguém.
Era algo de improviso que, de repente, mudava completamente o estado de uma
pessoa. Poucos dias depois da Ressurreição, os apóstolos encontram-se no lago a
pescar; na margem aparece um homem. Instala-se um diálogo à distância:
“Filinhos, tendes alguma coisa para comer?”; respondem: “Não!”. Mas eis que
brilha uma luz no coração de João, e ele lança um grito: “É o Senhor!”, e logo
tudo muda e remam para terra (cf. Jo 21,4ss). O mesmo acontece, embora duma
forma mais serena, com os discípulos de Emaús; Jesus caminhava com eles, “mas
os olhos deles estavam como cegos e não o reconheceram “; finalmente, no
momento de partir o pão, eis que “os olhos dos discípulos se abriram e eles
reconheceram Jesus” (Lc 24,13ss). Algo de semelhante acontece no dia em que um
cristão, depois de receber tantas e tantas vezes Jesus na Eucaristia,
finalmente, por um dom da graça, o “reconhece”.
Da fé e do “sentimento” da presença real, deve
brotar espontaneamente a reverência e, até, a ternura para com Jesus
sacramentado. Este é um sentimento tão delicado e pessoal, que só falando dele
nos arriscamos a estragá-lo. São Francisco de Assis teve o coração cheio desses
sentimentos de reverência e ternura. O Poverello enternece-se
diante de Jesus sacramentado, como em Greccio se enternecia diante do Menino de
Belém: ele o vê assim, confiado aos homens, tão inerme, tão humilde. Para ele
trata-se sempre do mesmo Jesus vivo e concreto, nunca de uma abstração
teológica. Na Carta a toda a Ordem escreve palavras de fogo
que queremos ouvir como agora dirigidas a nós, no final de nossa meditação
sobre a presença real de Jesus na Eucaristia:
Vede vossa dignidade, irmãos sacerdotes, e sede
santos, porque Ele é santo... Grande miséria e miserável debilidade,
quando o tendes tão presente e vós buscais alguma outra coisa em todo o mundo. Pasme
o homem inteiro, estremeça todo o mundo e exulte o céu quando, sobre o altar,
na mão do sacerdote, está Cristo, Filho do Deus vivo; Ó admirável alteza e
estupenda condescendência! Ó humildade sublime! Ó sublimidade humilde, pois o
Senhor do Universo, Deus e Filho de Deus, de tal maneira se humilha que, por
nossa salvação, se esconde sob uma pequena forma de pão! Vede,
irmãos, a humildade de Deus e derramai diante dele os vossos corações;
humilhai-vos também vós, para serdes exaltados por Ele. Por isso não
retenhais nada de vós para vós mesmos, para que vos receba inteiros aquele que
a vós se dá inteiro.
Tradução de fr. Ricardo Farias, ofmcap
[1] Sto. Ambrósio, De sacramentis, IV,
14-16 (PL 16, 439 ss).
[2] Cf. S. Tomás de Aquino, Summa
Theologiae, III, q. 75, a. 4.
[3] Teodoro de Mopsuéstia, Homilias
catequéticas, XVI, 11ss.
[4] Cf. Atas do colóquio de Marburgo de 1529 (ed.
de Weimar, 30,3. pp. 110ss).
[5]
S. Gregório de Nissa, Sobre o Cântico, XI, 5, 2 (PG 44,1001) (aisthésis
parousías).
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