"Será
que Deus ama ser implorado para conceder os seus benefícios? Será que a nossa
oração pode fazer Deus mudar seus planos? Não, mas há coisas que Deus decidiu
conceder-nos como fruto, junto com sua graça e a nossa oração, quase como para
compartilhar com as suas criaturas o mérito do benefício recebido. É ele quem
nos impulsiona a fazê-lo: “Pedi e vos será dado, disse Jesus, batei e a porta
vos será aberta” (Mt 7,7)."
Vatican News
O Fr. Raniero Cantalamessa, OFMCap
fez a pregação da Sexta-feira da Paixão na Basílica de São Pedro. Eis o texto
na íntegra:
"São Gregório Magno dizia que a
Escritura cum legentibus crescit, cresce com aqueles que a leem[1].
Exprime significados sempre novos segundo as perguntas que o homem traz no
coração ao lê-la. E nós, neste ano, lemos a narrativa da Paixão com uma
pergunta – melhor, com um grito – no coração que se levanta de toda a terra.
Devemos procurar colher a resposta que a palavra de Deus lhe dá.
O que acabamos de escutar é a
narrativa do mal objetivamente maior jamais cometido na terra. Nós podemos
olhar para ele de dois ângulos diversos: ou pela frente, ou por trás, isto é,
ou pelas suas causas, ou pelos seus efeitos. Se nos detemos nas causas
históricas da morte de Cristo, nós nos confundimos e cada um será tentado em
dizer como Pilatos: “Eu não sou responsável pelo sangue deste homem” (Mt
27,24). A cruz é melhor compreendida pelos seus efeitos do que pelas suas
causas. E quais foram os efeitos da morte de Cristo? Justificados pela fé nele,
reconciliados e em paz com Deus, replenos de esperança de uma vida eterna! (cf.
Rom 5,1-5)
Mas há um efeito que a situação em
ato nos ajuda a colher em particular. A cruz de Cristo mudou o sentido da dor e
do sofrimento humano. De todo sofrimento, físico e moral. Ela não é mais um
castigo, uma maldição. Foi redimida pela raiz, quando o Filho de Deus a tomou
sobre si. Qual é a prova mais segura de que a bebida que alguém lhe oferece não
está envenenada? É se ele bebe em sua frente do mesmo copo. Assim Deus fez: na
cruz bebeu, ao lado do mundo, do cálice da dor até a borra. Mostrou assim que
ele não está envenenado, mas que há uma pérola em seu fundo.
E não só a dor de quem tem a fé, mas
toda dor humana. Ele morreu por todos. “Quando for elevado da terra – dissera
–, atrairei todos a mim” (Jo 12,32). Todos, não somente alguns! “Sofrer –
escrevia São João Paulo II do seu leito no hospital após o atentado – significa
tornar-se particularmente receptivo, particularmente aberto à ação das forças
salvíficas de Deus, oferecidas em Cristo à humanidade”[2]. Graças à cruz de
Cristo, o sofrimento se tornou também ele, à sua maneira, uma espécie de
“sacramento universal de salvação” para o gênero humano.
*
* *
Qual é a luz que tudo isso lança
sobre a situação dramática que a humanidade está vivendo? Também aqui, mais do
que para as causas, devemos olhar para os efeitos. Não apenas os negativos, dos
quais ouvimos todo dia as tristes manchetes, mas também os positivos, que
somente uma observação mais atenta nos ajudar a colher.
A pandemia de corona vírus nos
despertou bruscamente do perigo maior que sempre correram os indivíduos e a
humanidade, o do delírio de onipotência. Temos a ocasião – escreveu um
conhecido Rabino judeu – de celebrar este ano um especial êxodo pascal, o “do
exílio da consciência”[3]. Bastou o menor e mais informe elemento da natureza,
um vírus, para nos recordar que somos mortais, que o poderio militar e a
tecnologia não bastam para nos salvar. “Não dura muito o homem rico e poderoso:
– diz um salmo da Bíblia – é semelhante ao gado gordo que se abate” (Sl 49,21).
E é verdade!
Enquanto pintava os afrescos da
catedral de São Paulo em Londres, o pintor James Thornhill, a um certo ponto,
foi tomado por tanto entusiasmo por um afresco seu que, afastando-se para vê-lo
melhor, não percebia que quase despencava no vão do andaime. Um assistente,
horrorizado, entendeu que um grito de chamada teria apenas acelerado o
desastre. Sem pensar duas vezes, molhou um pincel na tinta e o arremessou
contra o afresco. O mestre, pasmo, deu um passo adiante. A sua obra estava
comprometida, mas ele estava salvo.
Assim Deus às vezes faz conosco:
confunde os nossos projetos e a nossa tranquilidade, para nos salvar do abismo
que não vemos. Mas cuidado para não nos enganarmos. Não foi Deus que arremessou
o pincel contra o afresco de nossa orgulhosa civilização tecnológica. Deus é
nosso aliado, não do vírus! “Eu tenho um desígnio de paz, não de sofrimento”,
ele mesmo nos diz na Bíblia (Jr 29,11). Se esses flagelos fossem castigos de
Deus, não seria explicado por que eles caem igualmente nos bons e nos maus, e
por que geralmente são os pobres que têm as maiores consequências. Eles seriam
mais pecadores que outros?
Aquele que chorou um dia pela morte
de Lázaro chora hoje pelo flagelo que caiu sobre a humanidade. Sim, Deus
"sofre", como todo pai e toda mãe. Quando descobrirmos um dia isso,
teremos vergonha de todas as acusações que fizemos contra ele na vida. Deus
participa da nossa dor para superá-la. “Deus – escreve Santo Agostinho –, por
ser soberanamente bom, nunca deixaria qualquer mal existir em suas obras se não
fosse bastante poderoso e bom para fazer resultar do mal o bem”[4] .
Será que Deus Pai quis a morte do seu
Filho, a fim de daí tirar o bem? Não, simplesmente permitiu que a liberdade
humana fizesse o seu percurso, contudo, fazendo-a servir ao seu plano, não ao
dos homens. Isto vale também para os males naturais, como terremotos e
pestilências. Não os provoca. Ele deu também à natureza uma espécie de
liberdade, claro, qualitativamente diversa daquela moral do homem, mas ainda
assim, sempre uma forma de liberdade. Liberdade de evoluir-se segundo suas leis
de desenvolvimento. Não criou o mundo como um relógio pré-programado em cada
mínimo movimento. É o que alguns chamam de acaso, e que a Bíblia chama, ao
contrário, de “sabedoria de Deus”.
*
* *
O outro fruto positivo da presente
crise de saúde é o sentimento de solidariedade. Quando foi, desde que há
memória, que os homens de todas as nações se sentiram tão unidos, tão iguais,
tão pouco contenciosos, como neste momento de dor? Jamais como agora temos
sentido a verdade de um nosso grande poeta: “Homens, paz! Sobre a terra firme
grande é mistério”.[5] Esquecemo-nos dos muros por construir. O vírus não
conhece fronteiras. Em um segundo, abateu todas as barreiras e as distinções:
de raça, de religião, de censo, de poder. Não devemos voltar atrás quando este
momento tiver passado. Como tem nos exortado o Santo Padre, não devemos
desperdiçar esta ocasião. Não deixemos que tanta dor, tantas mortes, tanto
esforço heroico por parte dos profissionais de saúde tenha sido em vão. É esta
a “recessão” que mais devemos temer.
Transformarão suas espadas em arados
e suas lanças em foices:
não pegarão em armas uns contra os
outros
e não mais travarão combate (Is 2,4).
É o momento de tornar real algo desta
profecia de Isaías, da qual a humanidade desde sempre aguarda o cumprimento.
Demos um basta à trágica corrida às armas. Vocês gritam com todas as suas
forças, jovens, porque é acima de tudo o seu destino que está em jogo.
Destinemos os intermináveis recursos empregados às armas a finalidades de que,
nestas situações, vemos a necessidade e a urgência: a saúde, o saneamento, a
alimentação, o cuidado da criação. Deixemos à geração que virá, se necessário,
um mundo mais pobre de coisas e dinheiro, porém mais rico de humanidade.
*
* *
A
palavra de Deus nos diz qual é a primeira coisa que devemos fazer em momentos
como estes: gritar a Deus. É ele mesmo quem põe nos lábios dos homens as
palavras para se gritar a ele, às vezes, até palavras duras, de lamento, e
quase de acusação. “Levantai-vos, vinde logo em nosso auxílio, libertai-nos
pela vossa compaixão! […] Despertai! Não nos deixeis eternamente!” (Sl
44,24.27). “Mestre, estamos perecendo e tu não te importas?” (Mc 4,38).
|
Será que Deus ama ser implorado para
conceder os seus benefícios? Será que a nossa oração pode fazer Deus mudar seus
planos? Não, mas há coisas que Deus decidiu conceder-nos como fruto, junto com
sua graça e a nossa oração, quase como para compartilhar com as suas criaturas
o mérito do benefício recebido.[6] É ele quem nos impulsiona a fazê-lo: “Pedi e
vos será dado, disse Jesus, batei e a porta vos será aberta” (Mt 7,7).
Quando, no deserto, os hebreus eram
mordidos por serpentes venenosas, Deus ordenou a Moisés para levantar sobre uma
haste uma serpente de bronze, e quem a olhava não morria. Jesus se apropriou
deste símbolo. “Como Moisés levantou a serpente no deserto – disse a Nicodemos
–, assim é necessário que o Filho do Homem seja levantado, para que todos os
que nele crerem tenham a vida eterna” (Jo 3,14-15). Também nós, neste momento,
somos mordidos por uma invisível “serpente” venenosa. Olhemos para aquele que
foi “levantado” por nós sobre a cruz. Adoremo-lo por nós e por todo o gênero
humano. Quem olhar para ele com fé e amor não morrerá. E se morrer, será para
entrar na vida eterna.
"Depois de três dias eu
ressuscitarei", Jesus predisse (cf. Mt 9:31). Nós também, depois desses
dias que esperamos que sejam curtos, ressuscitemos e saímos dos túmulos de
nossas casas. Não para voltar à vida anterior como Lázaro, mas para uma nova
vida, como Jesus. Uma vida mais fraterna, mais humana. Mais cristã!
________________________________________
Traduzido do italiano por Ir. Ricardo
Farias, OFMCap
[1] Moralia in Iob, XX,1.
[2] Salvifici doloris, n.
23.
[3] https://blogs.timesofisrael.com/coronavirus-a-spiritual-message-from-brooklyn (Yaakov
Yitzhak Biderman).
[4] Enchiridion, 11,3 (PL
40, 236).
[5] G. Pascoli, “I due fanciulli” (Os
dois filhos).
[6]
Cf. S. Tomás de Aquino, S.Th. II-IIae, q. 83, a.2.
Fonte:
Vatican News
Nenhum comentário:
Postar um comentário