segunda-feira, 23 de dezembro de 2019

APÓS 13 ANOS NA GUINÉ-BISSAU, NA ÁFRICA, PADRE FALA DA IMPORTÂNCIA DA MISSÃO AD GENTES



Após 13 anos na Guiné-Bissau, na África, padre fala da importância da missão ad gentes
Em tempos de um maior despertar de consciência sobre a importância da missão Ad Gentes e da retomada de um novo impulso à transformação missionária da vida, sobretudo com a missão tendo se tornado um dos quatro pilares da ação da Igreja no Brasil para o próximo quadriênio (2019-2023), a entrevista desta edição da Revista Bote Fé é com o padre Lúcio Espíndola Santos, missionário além-fronteiras da arquidiocese de Florianópolis enviado à Guiné-Bissau em 2006.
Padre Lúcio e o catequista após visita e catequese em uma comunidade. Crédito: Arquivo Pessoal/Padre Lúcio Espíndola
Lúcio Espíndola entrou no seminário aos 12 anos. Seu desejo era o de ser padre para “melhor chegar à santidade e para ajudar às pessoas”, como ele define. Aos 26, tendo concluído os estudos de preparação uma dúvida ainda o circundava: não sabia se seria padre ou político -, pois àquela altura descobrira que “para ser santo não precisava ser padre, mas que bastava viver bem a vontade de Deus”. Resolveu então consultar o arcebispo da época, que dissera-lhe de forma delicada e sugestiva que “políticos já existiam bastante, mas que padres não”. Foi diante dessas palavras que Lúcio pediu-lhe para ser ordenado padre.
Depois de 12 anos de paróquia, fez então o pedido de trabalhar na igreja-irmã, Paróquia de Oliveira dos Breinhos, no sertão da Bahia, diocese de Barra. Foi enviado a esta paróquia, como missionário, onde ficou desenvolvendo um trabalho por seis anos. No último ano, participou de um congresso missionário latino-americano, Conla 5, em Belo Horizonte, ocasião em que despertou seu desejo para a missão além-fronteiras. Passados dez anos e de volta à arquidiocese, padre Lúcio insistiu em ir à missão além-fronteiras. E assim, no dia 20 de maio de 2006, no XVº Congresso Eucarístico Nacional, acontecido em Florianópolis, padre Lúcio foi enviado à missão na Guiné-Bissau, como associado ao Pontifício Instituto Missionário do Exterior – Pime, aos 56 anos de idade. O país localizado na África, tem o português e o crioulo como línguas-oficiais. Ele retornou ao Brasil no mês de setembro deste ano, após 13 anos de missão e nos conta como foi a experiência.
Quais foram os principais desafios enfrentados no país? Nos situe sobre a realidade local, política e social encontrada.
Os primeros desafios que encontrei foram em mim próprio. Senti a dificuldade em falar bem a língua crioula e a distância da terra natal e dos amigos. Ajudou-me muito o bispo que tinha a casa sempre aberta para acolher os padres, e ajudou-me a comunidade do Pime que me recebeu como um de seus membros, fazendo com que eu participasse de sua experiência missionária, da sua estrutura de instituto e de sua vida de família.
O país é um dos mais pobres do mundo. Basta dizer que ainda não tem uma rede elétrica nacional. Praticamente não tem fábricas nem industrias. A agricultura ainda é manual. O país vive em uma instabilidade política.
O ano escolar, neste período 2018/19, quase foi declarado nulo devido às constantes greves e dias sem aulas. O número de anafalbetos é de 50% da população. O nível médio de vida é de 49 anos. A malária atinge fortemente o povo, mas também a tuberculose. A religião tradicional africana é assumida por 47% da população, a religião mulçumano por 43% e o cristianismo é vivido por 10% da população. Os cristão-católicos estão mais presentes na capital.
O povo guineense habituou-se a conviver tranquilamente com as diferenças e é muito acolhedor. A terra é boa. Cultiva-se o arroz, de forma muito original, em terrenos em que chega a água salgada do mar. E tem a monocultura do caju. O mar é bom de peixe, o que atrai embarcações, sobretudo de países asiáticos. A informática já é uma realidade e o telefone, inclusive a internet, encontra-se por toda a Guiné-Bissau. Usa-se pequenos geradores ou painéis solates para energia elétrica. O governo depende muito de ajudas externas, mas também da Igreja. Há uma forte presença da União Européia e de órgãos das Nações Unidas no país que ali atuam com muitos projetos sociais.
O país é político, militar, ecológico e religiosamente estratégico, devido a sua posição geográfica e a suas riquezas naturais. Teve sua independência de Portugal em 1973, conquistada com 12 anos de guerra. Nestes anos todos somente este último presidente é que conseguiu chegar ao final de seu mandato.
Nos fale um pouco sobre a missão desenvolvida lá. O que de mais significativo aprendeu? Qual o trabalho desenvolvido/feito no local? Quais foram os resultados alcançados?
Na missão percebi meus limites humanos e espirituais, encontrei-me com Deus providência, senti o mistério do ser humano e contemplei a profundidade da natureza. Descobri o espírito acolhedor das pessoas simples. Por onde andei, vi, muitas vezes, comunidades que fazem uma alimentação completa apenas uma vez ao dia, mas que nunca deixam de convidar para comer quem passa por perto. Comendo, geralmente no lado de fora da casa, já que a casa é mais para dormir, juntam-se em grupos ao redor de tijelas de arroz, com molho e pedaço de peixe, quando há.
 Trabalhei em duas missões. Em ambas o trabalho principal foi a evangelização, sobretudo através de catequese e visita às comunidades, mas grande parte do tempo era e é dedicado ao serviço social, sobretudo à saúde e à educação. Isto devido à pobreza e, muitas vezes, à ausência do governo.
Na primeira comunidade, Empada, tive a oportunidade de juntar-me às Irmãs da Consolata e colaborar no desenvolvimento das comunidades, levando adiante a catequese, a ponto de chegarmos a transformar a missão em paróquia. Havia a participação decisiva, sobretudo das irmãs, na escola de ensino médio e em um jardim infantil. Também trabalhavam com a assistência às mães gestantes, crianças e até com uma farmácia. Dependíamos de benfeitores. Eu, pessoalmente, com o dinheiro dos benfeitores, dava centenas de ajuda a famílias e pessoas carentes, mas sem um projeto. Já na segunda Missão, Missão de Tite, organizei-me com projetos de apoio a estudantes, sobretudo iniciando um projeto de educação infantil nas comunidades rurais, a começar pelos três anos de idade, atingindo quinhentos e cinquenta crianças em seis comunidades.
O trabalho de jardim infantil e pré-escolar nas comunidades rurais acredito ter sido um trabalho inovador e de consequências muito positivas para o futuro das comunidades. A missão, além da atuação fundamental na escola de ensino médio, com seiscentos alunos, mantinha uma participação forte no hospital local, que é do governo mas que foi construído por benfeitores da missão. E o bonito é que todo este trabalho continua acontecendo. Nesta última missão, tive a felicidade de participar da vida de uma das novas comunidades, Comunidade Divino Oleiro, de Leigos consagrados, fundada na mesma aquidiocese de Florianópolis, e que assume a administração da missão.
Na sua opinião, qual deve ser o diferencial do missionário que vai atuar na Guiné-Bissau?
Quem for em missão para a Guiné-Bissau deve aceitar viver em uma cultura diferente. Mergulhar em uma nova realidade. Assumir o desafio de aprender outra maneira de fazer pastoral, aceitando não ver o fruto de seu trabalho e sentir-se contente com uma vida simples. Sobretudo, lembrar que a virtude principal do missionário é a fé. Afinal, o missionário é também um místico.
Grupo de muçulmanos organizados para recepcionar um membro da comunidade que está chegando da peregrinação à Meca. Crédito: Arquivo Pessoal/Padre Lúcio Espíndola
Como o senhor avalia os desafios da missão Ad Gentes na atualidade?
Reconhecendo que todos somos missionários e que a missão começa aqui onde estou, e que temos novos ambientes, areópagos que necessitam de evangelização, um desafio é não esquecer a missão de primeiro anúncio para pessoas e povos que não conhecem ainda o primeiro anúncio da Boa Nova de Jesus Cristo, e que estão fora de nosso país. Temos locais em que as pessoas estão abertas ao cristianismo, como em nossa missão de Tite e de Empada, na Guiné-Bissau, onde apenas dois ou três por cento das pessoas são batizadas. Para ficar mais claro, além da expressão “ad gentes” devemos lembrar também a expressão “além-fronteiras”.
Um segundo desafio é o de que a diocese se sinta a primeira responsável pela missão ad gentes/além-fronteiras. No meu caso, após treze anos de missão ad gentes, volto à minha arquidiocese para que a missão deixe de ser a missão de um padre e seja a missão da arquidiocese. E assim, aquele que era um padre associado ao pime, com a ajuda do pime, possa ser agora um padre Fidei Donum, ou seja, enviado diretamente pela arquidiocese.
O Papa Francisco proclamou outubro de 2019 como o Mês Missionário Extraordinário. Na sua opinião, essa iniciativa promove maior conscientização da missão Ad Gentes nas igrejas particulares e nos diferentes sujeitos da missão?
Essa feliz iniciativa do nosso querido papa Francisco vai promover a missão e o espirito missionário. Mas corremos o risco de limitar-nos à missão popular, à reevengelização, ou, no máximo, à missão entre regiões dentro do Brasil. É importante ter a missão além-fronteiras no coração. Falta-nos modelos, exemplos, de missão além-fronteiras. Agradecemos o testemunho do Regional Sul II e do Regional Sul III da CNBB que fazem uma experiênica de missão além-fronteiras. O mês missionário extraordinário será uma oportunidade de conhecermos outros testemunhos de dioceses de espírito missionário além-fronteiras. Vamos colaborar para esta conscientização.
O tema do Mês Extraordinário Missionário, convocado para outubro de 2019 foi “Batizados e enviados: a Igreja de Cristo em Missão no Mundo”. Com essa temática, o que o papa desejou inspirar?
O papa lembra-nos que todo batizado é um missionário, comprometido com o testemunho e o anúncio da boa nova de Cristo. E a expressão “em missão no mundo” abre-nos para a missão nos diversos ambientes e lugares onde ainda não conhecem Jesus Cristo Salvador, e, ao mesmo tempo, nos coloca a missão ad gentes/além fronteiras como a referência da missão. O papa nos convoca à missão.
Usando uma expressão muito usada pelo Papa Francisco , como o senhor definiria o que é ser uma “Igreja em saída”?
Uma Igreja em saída é uma comunidade consciente, viva, ativa , que acolhe, que mantém suas portas abertas a quem chega, que é simples, sem muitas exigências e burocracias. É esta a comunidade que pode sair ao encontro do outro, pois é uma comunidade que tem como acolher aquele a quem cativou. Uma Igreja em saída é uma igreja que adota o princípio de “ missão 360 graus, sem limites!”. Ser Igreja em saída é um estilo de vida, não é um simples programa. Exige o empenho permanente de seus membros.
Pessoalmente, minha dedicação hoje está em colaborar para que a minha arquidiocese continue este processo de conscientização missionária que já vem fazendo, e assuma a missão além-fronteiras com algum compromisso missionário envolvendo concretamente as paróquias, santuários, capelanias, pastorais, organismos, serviços, meios de comunicação, casas de formação, associações e movimentos de nossa Igreja Particular. Somente assim é que podemos ser uma Igreja Universal, de batizados e enviados, em missão no mundo!
Fonte: Revista Bote Fé, edição número 29, 2019.

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