O
Papa Francisco escreve aos Bispos dos Estados Unidos em seu retiro espiritual.
No contexto dos escândalos de abuso, ele pede "conversão" e
"comunhão fraterna", em oposição a soluções meramente
administrativas.
Cidade do Vaticano
O Papa Francisco enviou uma carta aos
Bispos da Conferência
Episcopal dos Estados Unidosreunidos desde a última quarta-feira
(02/01) no seminário de Mundelein, na Arquidiocese de Chicago, para um retiro
espiritual. Será uma semana de oração como pediu o Papa Francisco no convite
dirigido a toda a Conferência episcopal do país, no contexto do escândalo dos
abusos que atingiu a Igreja nos EUA.
Na sua carta o Santo Padre escreve
que no último dia 13 de setembro, durante o encontro que teve com a Presidência
da Conferência Episcopal, propôs “que fizéssemos juntos os Exercícios
Espirituais: um tempo de retiro, oração e discernimento como elo necessário e
fundamental no caminho para enfrentar e responder evangelicamente à crise de
credibilidade que vocês atravessam como Igreja. Vemos isso no Evangelho, o
Senhor nos momentos importantes de sua missão se retirava e passava a noite
inteira em oração e convidava seus discípulos a fazer o mesmo”. “Sabemos –
continua o Papa - que a importância dos eventos não resiste a qualquer resposta
ou atitude; pelo contrário, exige de nós pastores a capacidade e sobretudo a
sabedoria de gerar uma palavra, fruto de escuta sincera, orante e comunitária
da Palavra de Deus e da dor do nosso povo. Uma palavra gerada na oração do
pastor que, como Moisés, luta e intercede pelo seu povo”.
No encontro, - escreve o Papa
Francisco – “expressei ao cardeal DiNardo e aos bispos presentes o meu desejo
de acompanhá-los pessoalmente por alguns dias, nestes Exercícios Espirituais, o
que foi acolhido com alegria e esperança. Como sucessor de Pedro, gostaria de
unir-me a vocês e com vocês implorar ao Senhor que envie o seu Espírito capaz
de "renovar todas as coisas" e mostrar os caminhos de vida que, como
Igreja, somos chamados a seguir para o bem de todas as pessoas que nos foram
confiadas. Apesar dos esforços realizados, devido a problemas logísticos, não
poderei acompanhá-los pessoalmente. Esta carta – sublinha o Santo Padre - quer
compensar, de alguma forma, a viagem não realizada. Também me alegra que vocês
tenham aceitado a oferta que seja o pregador da Casa Pontifícia a guiar os
Exercícios Espirituais com sua sábia experiência espiritual.
Com estas linhas, desejo estar mais
perto de vocês e como irmão refletir e compartilhar alguns aspectos que
considero importantes, e também estimulá-los na oração e nos passos que vocês
dão na luta contra a "cultura do abuso" e na maneira de enfrentar a
crise de credibilidade.
“Entre vós não deve ser assim. Quem
quiser ser o maior entre vós seja aquele que vos serve, e quem quiser ser
o primeiro entre vós seja o servo de todos” (Mc 10, 43-44). Estas palavras, com as quais Jesus
encerra a discussão e ressalta a indignação que nasce entre os discípulos
quando ouvem Tiago e João pedir para sentarem-se à direita e à esquerda do
Mestre, servirão como guia nesta reflexão que desejo realizar com vocês.
Francisco evidencia na sua carta que
o Evangelho não tem medo de revelar e destacar certas tensões, contradições e
reações que existem na vida da primeira comunidade de discípulos; pelo
contrário, parece fazê-lo ex-professo: busca pelos primeiros
lugares, ciúmes, invejas, arranjamentos e acomodações. Assim também como todas
as intrigas e complôs que, às vezes secretamente e outras publicamente, se
organizavam em torno da mensagem e da pessoa de Jesus pelas autoridades
políticas, religiosas e dos mercadores da época. Conflitos que aumentavam à
medida que se aproximava a Hora de Jesus no seu dom de si mesmo na cruz, quando
o príncipe deste mundo, o pecado e a corrupção pareciam ter a última palavra
contaminando tudo de amargura, desconfiança e murmúrio.
Como profetizou o idoso Simeão,
- continua o Papa Francisco na sua carta - os momentos difíceis e
cruciais têm a capacidade colocar à luz os pensamentos íntimos, as tensões e as
contradições que habitam pessoal e comunitariamente no discípulos. Ninguém pode
ser considerado isento disso; somos convidados como comunidade a vigiar para
que, nesses momentos, nossas decisões, opções, ações e intenções não sejam
viciadas (ou menos viciadas possível) por estes conflitos e tensões internas, e
sejam, acima de tudo, uma resposta ao Senhor que é vida para o mundo. Nos
momentos de maior turbamento, é importante prestar atenção e discernir para ter
um coração livre de compromissos e de aparentes certezas para ouvir o que mais
agrada ao Senhor na missão que nos foi confiada. Muitas ações podem ser úteis,
boas e necessárias e até podem parecer corretas, mas não todas têm
"sabor" de Evangelho. Se vocês permitem dizer de modo coloquial: é preciso
fazer atenção para que "o remédio não se torne pior do que a doença".
E isso requer de nós sabedoria, oração, muita escuta e comunhão fraterna.
Na continuação da carta o Papa
Francisco destaca os dois pontos: 1 “Entre vós não deve ser assim”. 2 “Quem
quiser ser o maior entre vós seja aquele que vos serve, e quem quiser ser
o primeiro entre vós seja o servo de todos”.
O Papa destaca que nos últimos
tempos, a Igreja nos Estados Unidos foi abalada por muitos escândalos que
afetam sua credibilidade no sentido mais profundo. Tempos tempestuosos na vida
de tantas vítimas que sofreram em sua carne o abuso de poder, de consciência e
sexual por parte de ministros ordenados, consagrados, consagradas e fiéis
leigos; tempos tempestuosos e de cruz para essas famílias e todo o povo de
Deus.
A credibilidade da Igreja tem sido
fortemente questionada e debilitada por esses pecados e crimes, mas
especialmente pelo desejo de dissimulá-los e escondê-los, o que gerou um maior
sentimento de insegurança, de desconfiança e de falta de proteção nos fiéis. A
atitude de ocultação, como sabemos, longe de ajudar a resolver os conflitos,
permitiu-lhes perpetuar-se e ferir mais profundamente o entrelaçamento de
relações que hoje somos chamados a curar e recompor.
Estamos conscientes – continua
Francisco - de que os pecados e os crimes cometidos e todas as suas
repercussões em nível eclesial, social e cultural criaram uma marca e uma
ferida profunda no coração do povo fiel. Encheram-no de perplexidade,
desconcerto e confusão; e isso serve muitas vezes como uma desculpa para
continuamente desacreditar e questionar a vida doada de tantos cristãos que
"mostram o imenso amor pela humanidade inspirada no Deus feito homem"
(Evangelii gaudium, n ° 76). Sempre que a palavra do Evangelho atrapalha ou se
torna desconfortável, não são poucas as vozes que pretendem silenciá-la,
sinalizando o pecado e as incongruências dos membros da Igreja e, mais ainda,
de seus pastores.
A luta contra a cultura do abuso,
- escreve ainda o Santo Padre - a ferida na credibilidade, bem como o
desconcerto, a confusão e descrédito na missão exigem, e exigem de nós, uma
nova e decisiva atitude para resolver o conflito. "Vocês sabem que aqueles
que se consideram governantes - nos diria Jesus - dominam as nações como se fossem
os patrões, e os poderosos fazem sentir sua própria autoridade. Isso não deve
acontecer entre vocês". A ferida na credibilidade requer uma abordagem
particular, porque não se resolve por decretos voluntários ou simplesmente
estabelecendo novas comissões ou melhorando os organogramas de trabalho como se
fôssemos chefes de uma agência de recursos humanos. Uma similar visão acaba
reduzindo a missão do pastor da Igreja a uma mera tarefa
administrativa/organizacional no "empreendimento da evangelização. “Sejamos
claros, muitas dessas coisas são necessárias, mas insuficientes, porque não
conseguem assumir e enfrentar a realidade em sua complexidade e correm o risco
de acabar reduzindo tudo as problemas organizacionais”.
A ferida na credibilidade toca em
nível neurológico os nossos modos de se relacionar, escreve o Pontífice.
“Podemos constatar que existe um tecido vital que foi danificado e, como
artesãos, somos chamados a reconstruir. Isso implica a capacidade - ou não - de
termos como comunidade de construir vínculos e espaços saudáveis e maduros,
capazes de respeitar a integridade e a intimidade de cada pessoa. Implica a
capacidade de convocar para despertar e infundir confiança na construção de um
projeto comum, amplo, humilde, seguro, sóbrio e transparente. E isso requer não
apenas uma nova organização, mas também a conversão de nossa mente (metanoia),
de nossa maneira de rezar, de administrar poder e o dinheiro, de viver a
autoridade e também de como nos relacionamos uns com os outros e com o mundo”.
Uma nova época eclesial precisa
basicamente de pastores mestres de discernimento na passagem de Deus para a
história de seu povo e não de simples administradores, pois as ideias se
debatem, mas as situações vitais são discernidas. Portanto, em meio à desolação
e à confusão que as nossas comunidades vivem, nosso dever é - em primeiro lugar
- encontrar um espírito comum capaz de nos ajudar no discernimento, não para
obter a tranquilidade fruto de um equilíbrio humano ou de um voto democrático
que faça "vencer" uns sobre os outros, isso não!
Mas um modo colegialmente paternal de
assumir a situação atual que proteja - acima de tudo - do desespero e da
orfandade espiritual o povo que nos foi confiado. Isso nos permitirá mergulhar
melhor na realidade, tentando entendê-la e ouvi-la de dentro, sem permanecer
prisioneiros.
Sabemos – sublinha o Papa - que os
momentos de dificuldade e de provação geralmente ameaçam a nossa comunhão
fraterna, mas também sabemos que podem ser transformados em momentos de graça
que fortalecem nossa dedicação a Cristo e a tornam crível. Essa atitude nos
pede a decisão de abandonar como modus operandi o descrédito e
a deslegitimação, a vitimização e a reprovação no modo de se relacionar e, ao
contrário, dar espaço à brisa suave que só o Evangelho pode nos oferecer.
Não nos esqueçamos que "a falta
de um reconhecimento sincero, sofrido e orante de nossos limites é o que impede
à graça de agir melhor em nós, pois não se deixa espaço para provocar esse
possível bem que se integra em um caminho sincero e real de crescimento".
Todos os esforços- enfatiza o Papa
Francisco - que faremos para romper o círculo vicioso de repreensão,
deslegitimação e descrédito, evitando o murmúrio e a calúnia, em vista de um
caminho de aceitação orante e vergonhosa dos nossos limites e pecados e
estimulando o diálogo, o confronto e o discernimento, tudo isso nos permitirá
encontrar caminhos evangélicos que despertem e promovam a reconciliação e a
credibilidade que nosso povo e a missão exigem de nós. Faremos isso se conseguirmos
deixar de projetar nos outros nossas confusões e insatisfações, que são
obstáculos à unidade e se nos atrevermos a nos ajoelhar diante do Senhor,
deixando-nos interrogar pelas suas feridas, através das quais poderemos ver as
feridas do mundo.
2. “Quem quiser ser o maior entre vós
seja aquele que vos serve, e quem quiser ser o primeiro entre vós seja o
servo de todos”.
Francisco destaca na sua longa carta
que “o Povo fiel de Deus e a missão da Igreja já sofreram e sofrem muito, por
causa dos abusos de poder, consciência, sexuais e da má administração, para
acrescentar-lhes o sofrimento de encontrar um episcopado desunido, concentrado
em desprestigiar-se mais do que em encontrar formas de reconciliação. Essa
realidade nos impele a olhar para o essencial, a nos despojar de tudo que não
ajuda a tornar o Evangelho de Jesus Cristo transparente”.
Hoje nos é pedido uma nova presença
no mundo conforme à Cruz de Cristo, que se cristalize no serviço aos homens e
mulheres do nosso tempo. Lembro-me das palavras de São Paulo VI no início de
seu pontificado: "Devemos nos tornar irmãos de homens no ato mesmo que
queremos ser seus pastores e pais e mestres. O clima de diálogo é a amizade. Ou
melhor, o serviço. Tudo isso devemos recordar, estudar e praticar de acordo com
o exemplo e preceito que Cristo nos deixou”.
Esta atitude não reivindica para si
os primeiros lugares nem mesmo o sucesso e aplauso para nossos atos, mas pede,
a nós pastores, a opção fundamental de querer ser semente que germinará quando
e onde o Senhor quiser.
Trata-se de uma opção que nos salva
de cair na armadilha de medir o valor de nossos esforços com os critérios de
funcionalidade e eficiência que governam o mundo dos negócios; antes, o caminho
é abrir-nos à eficácia e ao poder transformador do Reino de Deus que, como um
grão de mostarda - a menor e mais insignificante de todas as sementes - é capaz
de se transformar em um arbusto que serve para proteger. Não podemos nos
permitir, no meio da tempestade, perder a fé na força silenciosa, diária e
operante do Espírito Santo nos corações dos homens e da história.
Credibilidade nasce da confiança, e a
confiança vem do serviço sincero e cotidiano, humilde e gratuito para todos,
mas especialmente para os prediletos do Senhor. Um serviço que não pretende ser
de marketing ou estratégico para recuperar o lugar perdido ou o vão
reconhecimento no tecido social, mas - como eu quis salientar na última
Exortação Apostólica Gaudete et exsultate - porque pertence "à própria
substância do Evangelho de Jesus".
Que altíssima tarefa temos em nossas
mãos, irmãos; não podemos calá-la e anestesiá-la por causa de nossas limitações
e defeitos! Lembro-me das sábias palavras de Madre Teresa de Calcutá, que
podemos repetir pessoalmente e em comunidade: "Sim, tenho muitas fraquezas
humanas, muitas misérias humanas. [...] Mas Ele se abaixa e faz uso de nós, de
você e de mim, para ser seu amor e sua compaixão no mundo, apesar de nossos
pecados, apesar de nossas misérias e nossas falhas. Ele depende de nós para
amar o mundo e mostrar o quanto ele o ama. Se nos ocupamos muito de nós mesmos,
não haverá tempo para os outros"(Madre Teresa de Calcutá).
Caros irmãos, o Senhor sabia muito
bem que, na hora da cruz, a falta de unidade, a divisão e a dispersão, bem como
as estratégias para se livrar daquela hora, teriam sido as maiores tentações
que seus discípulos teriam vivido; atitudes desfigurariam e dificultado a
missão. Por isso Ele mesmo pediu ao Pai que cuidasse deles para que naqueles
momentos eles fossem uma só coisa e ninguém se perdesse. Confiantes e imersos
na oração de Jesus ao Pai, queremos aprender com Ele e, com determinada
deliberação, começar este tempo de oração, silêncio e reflexão, de diálogo
e de comunhão, de escuta e discernimento, para deixar que Ele forje o coração à
sua imagem e ajude a descobrir sua vontade.
Neste
caminho não prosseguimos sozinhos, Maria acompanhou e apoiou desde o início a
comunidade dos discípulos; com sua presença materna, ajudou a garantir que a
comunidade não se "perdesse" ao longo dos caminhos dos fechamentos
individualistas e a pretensão de salvar-se si mesma. Ela protegeu a comunidade
dos discípulos da orfandade espiritual que leva à auto-referencialidade e com
sua fé permitiu que ela perseverasse no incompreensível, esperando que chegasse
a luz de Deus. Pedimos a ela que nos mantenha unidos e perseverantes, como no
dia de Pentecostes, para que o Espírito seja derramado em nossos corações e nos
ajude em todos os momentos e lugares a dar testemunho de sua ressurreição.
Fonte: Vatican News
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