Por Dom Emanuele Bargellini, Prior do Mosteiro da Transfiguração
São Paulo (ZENIT.org) – Apresentamos o comentário à liturgia de hoje – III do Tempo Comum Is 8, 23b – 9,3; 1 Cor 1, 10 – 13.17; Mt 4, 12 -23 – redigido por Dom Emanuele Bargellini, Prior do Mosteiro da Transfiguração (Mogi das Cruzes - São Paulo). Doutor em liturgia pelo Pontificio Ateneo Santo Anselmo (Roma), Dom Emanuele, monge beneditino camaldolense, assina os comentários à liturgia dominical, sempre às quintas-feiras, na edição em língua portuguesa da Agência ZENIT.
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III DOMINGO DO TEMPO COMUM
Leituras: Is 8, 23b – 9,3; 1 Cor 1, 10 – 13.17; Mt 4, 12 -23
“O povo que vivia nas trevas viu uma grande luz, e para os que viviam na região escura da morte brilhou uma luz” (Mt 4,16, citando Isaías 9,1).
O violento furacão da prepotência de Herodes e dos caprichos de Herodíades mal tinha apagado a luz e a voz incômoda de João Batista (Mt 4,12; cf Mc 6, 17 – 29), quando uma nova luz mais brilhante e uma voz bem mais potente se levantaram no meio do povo, na “Galiléia dos pagãos”. A Galiléia era a região de Israel mais afetada, ao longo da história, mesmo ainda no tempo de Jesus, pelos sofrimentos da ocupação estrangeira e pagã e pela perda de identidade étnica e religiosa. O lugar menos provável para ali aparecer o Messias, como destaca com ironia Natanael: “De Nazaré pode sair algo de bom?” (cf. Jo 1,46).
Surpreendente estilo de Deus! O Verbo de Deus não só quis se fazer natural de Nazaré, mas, já adulto e fortalecido “com a força do Espírito Santo”, também escolheu a Galiléia e Nazaré como cenário da sua entrada na missão; embora saiba que exatamente a familiaridade com sua vida cotidiana de homem comum, muito, ou melhor, demasiadamente parecida com a dos outros habitantes do povoado e por isso mesmo bem conhecida pelos seus cidadãos, se torne causa de desconfiança e até de agressividade (cf. Lc 4, 16-30). O que impele Jesus a atuar neste lugar marginal e neste estilo solidário é o mesmo Espírito que o compenetrou no batismo no Jordão e o impeliu para o deserto onde enfrentou o adversário, aquele que atrapalha, que desde sempre com suas ilusões de poder procura afastar o homem da sua relação original com Deus.
Jesus não escolhe a cidade santa de Jerusalém, nem o lugar sagrado do seu templo, para iniciar sua missão. Chegará até lá, certo, mas no tempo estabelecido pelo Pai e como meta de um caminho interior que atravessa toda sua vida, como uma geografia espiritual a percorrer. A “subida a Jerusalém”, como sublinha fortemente Lucas, será uma viagem interior antes que transferência para um lugar físico, que o próprio Jesus vai construindo com escolhas sucessivas, amadurecidas no segredo de tantas noites de oração, para realizar a missão recebida pelo Pai.
Neste caminho Jesus introduz paulatinamente e com muita dificuldade os discípulos, que continuam imaginando a própria aventura com o Mestre como possibilidade de realizar sonhos ainda muito humanos (cf. Lc 9, 51. 57-62). O destino do discípulo não pode ser diferente da sorte do mestre, ontem, bem como hoje. Os três anúncios sucessivos da sua morte e de sua Ressurreição que deverá ocorrer em Jerusalém, e as brigas entre os doze sobre quem deveria ser primeiro no reino de Jesus, revelam a pedagogia cuidadosa e forte de Jesus e a dificuldade dos discípulos de entrarem na lógica do Verbo feito carne e do filho do homem que não tem onde apoiar a cabeça. Somente a luz interior, que brotará da dramática experiência da Páscoa e da inteligência despertada pelo Espírito Santo, desvelará aos discípulos o verdadeiro sentido do caminho de Jesus e do seu seguir-lhe.
Esta passagem dos critérios humanos para a inteligência do Espírito continua sendo a lei fundamental do caminho espiritual do discípulo de Jesus, em qualquer tempo, e qualquer seja a modalidade específica com que cada um procure responder ao chamado à santidade seguindo Jesus, como coloca bem em evidência a constituição Lumem Gentium, do Concílio Vaticano II, no capítulo 5º: “Vocação universal à santidade na Igreja”.
A segunda leitura (1 Cor 1,10-13;17), da qual emerge a contraditória situação interna da comunidade de Corinto, por certos aspectos tão rica dos dons do Espírito e tão entusiasta, evidencia quão árduo seja o caminho a percorrer, para se chegar a viver segundo a nova lógica: a da cruz de Cristo e do amor oblativo que ela traz consigo. Junto com a luminosidade da nova criação em Cristo, ficam subsistindo, nos cantinhos mais obscuros da pessoa, as trevas do homem velho, que se recusa a morrer para re-nascer da novidade de Cristo.
Com a escolha da Galiléia como cenário privilegiado do início da sua missão, Jesus escolhe o rumo escuro das contradições e dos sofrimentos do seu povo, espelho da humanidade inteira. Continua atuando na vida cotidiana o processo da sua encarnação e a sua descida nas ambiguidades da experiência humana para ali irradiar sua luz. Se o profeta Isaías (primeira leitura) prometia ao povo de Jerusalém salvação e novo futuro por parte de Deus, enquanto vivia o risco da guerra, Jesus penetra na situação do seu tempo, não menos sofrida, como luz que acende na noite a aurora de um novo dia, anunciando a Boa-nova do reino de Deus.
Ele se aproxima como luz que abre novo caminho à esperança e à novidade que vem de Deus, e como calor que alivia e cura as feridas da vida (Mt 4, 23). Luz que revela e atrai ao amor do Pai, que infunde coragem e suscita amor. Seu lugar não pode ser senão a Galiléia, bela e sofrida, familiar e hostil. Na Galiléia se concentra o mundo inteiro de todos os tempos. E Jesus continua escolhendo-a como sua casa e lugar, onde irradiar luz e gerar novas possibilidades de vida.
O evangelista nos diz que Jesus, com sua escolha pela situação mais complicada e com seu estilo de solidariedade e compaixão para com os necessitados, cumpre o misterioso desígnio de Deus, preanunciado na profecia de Isaías. Deus é fiel às suas promessas; é fiel ao seu cuidado em favor da vida, afim de que as pessoas tenham vida e vida plena, mesmo através das vicissitudes obscuras da vida e da história.
Com o breve aceno a João Batista aprisionado, e colocado no início da atividade de Jesus (Mt 4, 12), Mateus parece já projeta sobre o caminho dele a sombra da cruz. Ela tomará espaço crescente na experiência e no ensino de Jesus, assim como sobre o caminho a ser percorrido pelos discípulos de então e pelo discípulo de todo tempo que se põe no seu seguimento. Então disse Jesus aos discípulos: Se alguém quer vir após mim, negue-se a si mesmo, tome sua cruz e siga-me” (Mt 16,24). A liturgia, desde os primeiros passos do Tempo Comum, nos proporciona, junto com o mistério de Jesus, a vocação e a sorte do discípulo, e indica os eixos essenciais da sua identidade e da sua espiritualidade pascal.
“Daí em diante Jesus iniciou a pregar dizendo: ‘Convertei-vos, porque o reino dos céus está próximo”. Jesus anuncia que uma nova maneira de existir, iluminada pela aliança doada por Deus – o reinado de Deus – está iniciando. Antes, está já presente nele mesmo. Sua pregação, à diferença daquela de João, que pregava a necessidade da conversão em virtude da proximidade do severo juízo de Deus, anuncia que cada um e todos são procurados pela misericórdia de Deus. Sua presença exige uma opção radical: mudar a orientação da própria existência, passando da posição de uma auto-referência, fonte e fruto do pecado e do mal-estar existencial e nas relações humanas, para uma relação de si mesmo, totalmente orientada para Deus e o evangelho pregado por Jesus. Propõe e exige um re-nascer de novo e do alto, para entrar de verdade na novidade de vida que Jesus abre (cf. Jo 3, 3).
João anunciava o aproximar-se do esposo, e como seu amigo ficava contente em poder ouvir e escutar sua voz. Feito tal anúncio, fiel ao mandato recebido, retira-se com alegria, ciente que é necessário que ele cresça e eu diminua” (Jo 3, 29 -30). Deixa que até alguns dos seus discípulos mais próximos, solicitados pela sua fala sobre Jesus como o Eleito de Deus, o abandonem para seguirem a Jesus (Jo 2, 34-37).
Alertar com cuidado forte, insistente e ao mesmo tempo materno, cada pessoa para a conversão ao Senhor e apontar a estrada para o encontro direto e pessoal com o próprio Jesus é a vocação e a tarefa da Igreja. Mas é também vocação e tarefa de cada discípulo e discípula de Jesus, em força da unidade com ele gerada pelo batismo.
“Iluminados”, assim eram chamados nos primeiros séculos os batizados em Cristo. Iluminados e chamados a ser luz no mundo, em continuidade e derivação da única fonte da luz, que é o próprio Jesus (cf. Mt 5,14).
Jesus olha com amor a cada um na sua situação concreta de vida. Ele vê o que passa dentro do seu coração. Seu olhar ilumina com a luz de amor, se faz chamado a olhar para ele, se faz chamado a segui-lo. É o que acontece à beira do mar da Galiléia, quando Jesus, andando, vê antes Pedro e seu irmão André e depois Tiago e seu irmão João. Todos estão empenhados no próprio trabalho de pescadores.
Olhos que se encontram; histórias que deste momento para frente se cruzam. Nascem os primeiros discípulos, chamados a partilhar a vida com ele e sua missão, não por própria iniciativa mas pelo olhar amante de Jesus. Arrancados do mar de Galiléia e jogados no grande mar da aventura pessoal de Jesus e da história nova do mundo que com ele está nascendo. Subtraídos à rotina de uma magra pesca de peixe, destinada ao sustento da vida cotidiana de si mesmos e da própria família, e transformados em “pescadores de homens”, junto com ele que está dedicando a si próprio para salvá-los das tempestades da vida sem rumo.
Se em Nazaré Jesus encontrou resistência, nos quatro irmãos pescadores a sua voz encontra uma ressonância imediata e incondicionada. “Jesus disse a eles: ‘Segui-me, e eu farei de vós pescadores de homens’. E eles imediatamente deixaram as redes e o seguiram... Jesus os chamou. Eles imediatamente deixaram a barca e o pai, e o seguiram” (Mt 4, 19.21-22).
Chamado por parte de Jesus, escuta atenta, resposta imediata, escolha radical de deixar tudo para trás e entrada no seguimento de Jesus para partilhar sua vida e sua missão: estas são as características do discipulado de Jesus em todo tempo, para cada um.
O Tempo Comum e a vida cotidiana são o tempo e o lugar em que cada pessoa humana, como Pedro e seus companheiros à beira do mar de Galiléia, fica recebendo seu chamado à vida por parte de Deus. A Igreja, comunidade dos discípulos e das discípulas de Jesus, é o espelho simbólico desta relação dialógica de Deus para com cada pessoa, e o lar privilegiado onde cada um de nós pode ficar ouvindo o chamado sempre novo de Jesus a partilhar sua vida e sua missão a serviço do reino de Deus.
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