O pregador da Casa Pontifícia, cardeal Raniero Cantalamessa, OFMCap, propôs à Cúria Romana, nesta sexta-feira, 24 de março, a quarta pregação da Quaresma intitulada "mysterium fidei!" - reflexões sobre a liturgia . O Papa Francisco participou deste momento.
Fr. Raniero Card. Cantalamessa,
OFMCap
“MYSTERIUM FIDEI!”
Reflexões sobre a Liturgia
Quarta Pregação da Quaresma de
2023
Após aquelas sobre a
evangelização e sobre a teologia, gostaria de propor hoje algumas reflexões
sobre a liturgia e sobre o culto da Igreja, sempre com o intuito de dar uma
contribuição, por mais modesta e indireta, aos trabalhos do Sínodo. A liturgia
é o ponto de chegada, aquilo a que tende a evangelização. Na parábola
evangélica, os servidores são enviados pelas estradas e encruzilhadas para
convidar todos ao banquete. A Igreja é a sala do banquete e a Eucaristia, “a
ceia do Senhor” (1Cor 11,20) nela preparada.
Iniciemos,
em nossas reflexões, de uma palavra da Carta aos Hebreus: Quem se aproxima de
Deus – diz ela – deve crer que ele existe” (Hb 11,6). Antes ainda, contudo, de
crer que ele existe (que é já um aproximar-se), é necessário sentir ao menos o
“aroma” da sua existência. Isto é o que chamamos de senso do sagrado e que um
famoso autor chama “o numinoso”, qualificando-o como “mistério tremendo e
fascinante”[1].
Santo Agostinho antecipou surpreendentemente esta descoberta da moderna
Fenomenologia religiosa. Dirigindo-se a Deus, nas Confissões, diz:
“Quando te conheci pela primeira vez..., tremi de amor e de assombro: contremui
amore et orrore”[2].
E ainda: “Estremeço e inflamo” (et inhorresco et inardesco): estremeço
pela distância, inflamo pela semelhança”[3].
Se viesse a
faltar completamente o senso do sagrado, viria a faltar o próprio terreno, ou o
clima, em que desabrocha o ato de fé. Charles Péguy escreveu que “a assustadora
penúria e indigência do sagrado é a marca profunda do mundo moderno”. Se caiu o
senso do sagrado, dele permaneceu, contudo, o lamento que alguém definiu, de forma
laica, “saudade do Totalmente Outro” (Max Horkheimer).
Quarta pregação da Quaresma
Os jovens,
mais do que todos, percebem esta necessidade de serem transportados para fora
da banalidade do cotidiano, de escapar, e inventaram seus próprios modos de
satisfazer esta necessidade. Foi observado por estudiosos da psicologia de
massa que os jovens que participaram há um tempo de famosos shows de rock, como
os de Elvis Presley ou o Festival de Woodstock de 1969, eram transportados para
fora do seu mundo cotidiano e projetados em uma dimensão que lhes dava a
impressão de algo transcendente e sagrado.
Não
diversamente, acontece para aqueles que participam hoje dos megashows de
cantores e grupos musicais. O fato de estarem em muitos e vibrarem em uníssono
com uma massa, amplifica infinitamente a própria emoção. Tem-se o sentimento de
fazer parte de uma realidade diversa, superior, que dá lugar a uma espécie de
“devoção”. O termo “fã” (abreviação, como sabemos de fanatic, isto
é, fanático) é o corresponde secularizado de “devoto”. A qualificação de
“ídolos” dada aos seus queridos tem uma profunda correspondência com a
realidade.
Essas
reuniões de massa podem ter o seu valor artístico e por vezes veicular
mensagens nobres e positivas, como a paz e o amor. São “liturgias”, no sentido
originário e profano do termo, isto é, espetáculos oferecidos ao público, por
dever, ou para obter o seu favor. Não têm, contudo, nada a ver com a autêntica
experiência do sagrado. No título “Divina liturgia”, o adjetivo “divina” foi
acrescentado justamente para distingui-la das liturgias humanas. Há uma
diferença qualitativa entre as duas coisas.
Tentemos
ver por quais meios a Igreja pode ser, para os homens de hoje, o lugar
privilegiado de uma verdadeira experiência de Deus e do transcendente. A
primeira ocasião a que se pensa, também pela semelhança externa, são a grandes
reuniões promovidas pelas várias Igrejas cristãs. Pensemos, por exemplo, nas
Jornadas Mundiais da Juventude, e nos inúmeros eventos – congressos, convenções
e convocações – dos quais tomam parte dezenas (às vezes centenas) de milhares
de pessoas em todo o mundo. É incontável o número de pessoas pelas quais tais
eventos foram ocasião de uma forte experiência de Deus e o início de uma
relação nova e pessoal com Cristo.
O que faz a
diferença entre este tipo de encontros de massa e aqueles acima descritos é que
aqui, o protagonista não é uma personalidade humana, mas Deus. O senso do
sagrado que se experimenta neles é o único verdadeiramente genuíno, e não uma
substituição, pois é suscitado pelo Santo dos Santos e não por um “ídolo”.
Todavia,
são eventos extraordinários, dos quais nem todos e nem sempre podem participar.
A ocasião por excelência e mais comum, para uma experiência do sagrado na
Igreja, é a liturgia. A liturgia católica se transformou, em pouco tempo, de
ação com forte traço sacral e sacerdotal, a ação mais comunitária e
participada, onde todo o povo de Deus tem a sua parte, cada um com o próprio
ministério.
Gostaria de
tentar dizer como eu vejo e explico a mim mesmo esta mudança. Não é
absolutamente para me colocar como juiz do passado, mas para compreender melhor
o presente. O presente, na Igreja, jamais é negação do passado, mas seu
enriquecimento; ou ainda, como neste caso, superação do passado recente para
recuperar o mais antigo e originário.
Na evolução
da Igreja entendida como povo, acontece algo parecido ao que acontece à Igreja
entendida como edifício. Pensemos em algumas célebres basílicas e catedrais:
quantas transformações arquitetônicas no curso dos séculos para responder às
necessidades e aos gostos de cada época! Mas é sempre a mesma Igreja, dedicada
ao mesmo santo. Se há uma tendência geral em ato em época moderna, é aquela de
reportar tais edifícios – quando isso é possível e vale a pena – à sua
estrutura e estilo originários. A mesma tendência está em ato para a Igreja
como povo de Deus e, particularmente, para a sua liturgia. O Concílio Vaticano
II foi um seu momento decisivo, mas não o início absoluto. Ele colheu os frutos
de muito trabalho precedente.
Certamente,
não é o caso de adentrarmos aqui na história secular da Liturgia – outros o
fizeram e, justamente do ponto de vista que nos interessa[4].
Gostaria apenas de evidenciar a evolução que se refere ao senso do sagrado. No
início da Igreja e para os três primeiros séculos, a liturgia é realmente uma
“liturgia”, isto é, ação do povo (laos, povo, está entre as
componentes etimológicas de leitourgia). De São Justino, da Traditio
Apostolica de Santo Hipólito e outras fontes do tempo, obtemos uma
visão da Missa certamente mais próxima àquela reformada de hoje, do que aquela
dos séculos que temos às costas. O que aconteceu depois de então? A resposta é,
em uma palavra que não podemos evitar, mesmo se exposta a abuso:
clericalização! Em nenhum outro âmbito ela agiu mais vistosamente do que na
liturgia.
O culto
cristão e, particularmente, o sacrifício eucarístico, transformou-se rapidamente,
no Oriente e no Ocidente, de ação do povo em ação do clero. Por séculos e
séculos, a parte central da Missa, o Cânon, era pronunciado em latim pelo
sacerdote a voz baixa, atrás de uma cortina o um muro (um templo no templo!),
fora da vista e da escuta do povo. O celebrante aumentava a voz apenas nas
palavras finais do Cânon: “Per omnia saecula saeculorum”, e o povo
respondia “Amém!” ao que não tinha ouvido e muito menos entendido. O único
contato com a Eucaristia, anunciado pelo som dos sinos ou da campainha, era o
momento da elevação da Hóstia. Há um evidente retorno ao que acontecia no culto
do Antigo Testamento, quando o Sumo Sacerdote entrava no Sancta
sanctorum, com incensos e sangue das vítimas, e o povo permanecia fora
trêmulo, extenuado pelo senso da majestade e inacessibilidade de Deus.
O senso do
sagrado é fortíssimo aqui, mas, após Cristo, é aquele o justo e genuíno? Esta é
a pergunta crucial. Lemos na Carta aos Hebreus: De fato, não vos
aproximastes... de um fogo palpável e ardente, de escuridão, treva e
tempestade, da trombeta retumbante e do clamor das palavras... O
espetáculo era tão medonho, que Moisés disse: “Estou apavorado e
tremendo” (Ex 19,16-18; Dt 9,19). Vós, ao contrário, vos
aproximastes... de Jesus, o mediador da nova aliança e da aspersão com um
sangue mais eloquente que o de Abel (Hb 12,18-24). Cristo penetrou
além do véu e não fechou o limite atrás de si (Hb 10,20).
O sagrado
mudou o modo de se manifestar: não mais como mistério de majestade e poder, mas
como infinita capacidade ficar à parte, de se esconder. Após a consagração, o
celebrante diz ou canta: “Eis o mistério da fé!”. Alguns de nós, mais idosos,
recordarão que outrora esta exclamação era inserida até mesmo no meio da
fórmula de consagração do vinho: “Hic est enim calix sanguinis mei,
novi et aeterni testamenti – Mysterium fidei! – qui pro vobis
et pro multis effundetur in remissionem peccatorum”. Como se a Igreja se
detivesse, à metade da narrativa, estupefata com o que estava dizendo!
A reforma
fez bem, naturalmente, em deslocar tal exclamação para o final da consagração,
mas não deveríamos perder o senso de estupor encerrado naquela exclamação e,
sobretudo, entender qual deve ser o verdadeiro motivo vero do nosso estupor.
Ele deve ser do mesmo gênero daquele que se lê nos versos do Servo de Javé:
Assim
também espantará a muitas nações.
por causa dele, reis levarão a mão à boca,
pois estarão vendo coisas que ninguém jamais lhes tinha contado
e contemplarão o que não tinham ouvido.
(Is
52,15-53,1)
Estupor e
maravilha, sim, mas diante do quê? Não à majestade, mas à humilhação do Servo!
Alguém que tinha muito afinado este sentimento era Francisco de Assis: “Pasme o
homem inteiro – escrevia em sua carta a toda a Ordem –, estremeça todo o mundo
e exulte o céu quando, sobre o altar, na mão do sacerdote, está Cristo, Filho
do Deus vivo”. Mas “pasmar e estremecer” pelo quê? Escutemos o que segue: “Ó
admirável alteza e estupenda condescendência! Ó humildade sublime! Ó
sublimidade humilde, pois o Senhor do Universo, Deus e Filho de Deus, de tal
maneira se humilha que, por nossa salvação, se esconde sob uma pequena forma de
pão! Vede, irmãos, a humildade de Deus!”[5].
Trata-se
apenas de não arruinar esta possibilidade oferecida pela liturgia renovada com
improvisações arbitrárias e bizarras, e manter a necessária sobriedade e
compostura também quando a Missa é celebrada em situações e ambientes
particulares.
Em todas as
orações eucarísticas passadas e presentes, o convite que segue imediatamente a
consagração é sempre aquele a recordar: “Unde et memores”, “celebrando,
pois, a memória”. É a resposta ao mandamento de Jesus: “Fazei isto em memória
de mim!”. Mas, dele, o que devemos sobretudo recordar? “Todas as vezes que
comerdes desse pão e beberdes desse cálice, proclamais a morte do Senhor”
(1Cor 11,26).
Tentemos ir
uma vez além das palavras, ou melhor, dar às palavras um conteúdo existencial e
não apenas ritual. Voltemos ao momento em que Jesus as pronunciou; busquemos –
pelo que as narrativas evangélicas nos permitam saber – captar em que condições
interiores aquela palavra “Fazei isto em memória de mim!”, saiu da boca do Redentor.
Ele vê com clareza ao encontro do que está indo. Várias vezes falou disso, mas
como ao longe. Agora, o momento chegou; não há nem mesmo o intervalo de tempo
para atenuar a angústia. As palavras: “Este é o cálice do meu sangue” não
deixam dúvidas. É alguém que está indo ao encontro da morte, e uma morte
horrível. “Qui pridie quam pateretur”: na véspera de sua paixão...
E o que
acontece ao seu redor? Os apóstolos encontram o modo de discutir ainda uma vez
sobre quem é o maior (Lc 22,24-27), como irmãos que brigam por dividir entre si
a herança ao redor do leito de morte do próprio pai. Um deles, em poucas horas,
irá vendê-lo por 30 moedas de prata: “In qua nocte tradebatur”: na
noite em que ia ser entregue. Nestas condições institui o sacramento com o qual
se compromete em permanecer com os seus até o fim do mundo. Onde achar um
mistério mais “tremendo e fascinante” do que este? O dia que o Senhor nos
concedesse, apenas por um momento, lançar um olhar até o fim deste abismo de
amor e de dor, creio que não poderíamos mais viver como antes. Isso explica
porque São Pio de Pietrelcina parecia lutar na Missa e não conseguir levar a
termo a consagração.
Mas agora
devemos completar a nossa releitura da Missa. Ela não é somente o Cânon com a
consagração; há também a Liturgia da Palavra e a Comunhão. Temos à disposição
alguns meios que não havia no passado, para valorizar a Liturgia da Palavra e
fazer também dela ocasião para uma experiência do sagrado. Graças ao caminho
que a Igreja tem feito nesse meio-tempo em muitos campos, nós temos um acesso
novo, mais direto, à Palavra de Deus. Ela pode ressoar com uma riqueza e
inteligência maiores do que no passado.
A atual
liturgia é riquíssima de Palavra de Deus, disposta sabiamente, segundo a ordem
da história da salvação, em um quadro de ritos frequentemente em relacionados
com a linearidade e simplicidade das origens. Devemos valorizar estes meios.
Nada pode romper o coração do homem e lhe fazer sentir a transcendente
realidade de Deus, melhor do que uma viva palavra de Deus, proclamada com fé e
aderência à vida, durante a liturgia. A fé – afirma São Paulo – pelo ouvir; e o
ouvir, pela palavra de Cristo: Fides ex auditu (Rm 10,17).
Tantas
palavras de Jesus, possivelmente escutadas pouco antes no Evangelho do dia, no
momento da consagração, voltam a ressoar no coração, como se pronunciadas de
novo pelo seu autor vivo e realmente presente sobre o altar. Recordarei sempre
o dia que, após ter comentado no Evangelho a palavra de Jesus: “Aqui está quem
é mais do que Jonas; aqui está quem é mais do que Salomão” (cf. Mt 12,41-42),
ao me levantar da genuflexão após a consagração, veio-me exclamar, dentro de
mim, envolvido e cheio de estupor: “Aqui está quem é mais do que Salomão!”.
Também a
leitura do Antigo Testamento, a partir da relação com o trecho evangélico,
desencadeia significados novos e iluminadores. Na passagem da figura à
realidade, a mente – dizia Santo Agostinho – se acende como “uma tocha em
movimento”[6].
Como aos dois discípulos de Emaús, Jesus continua a nos explicar “o que em
todas as Escrituras se referia a ele” (cf. Lc 24,27).
E depois,
eu dizia, a Comunhão. Como a liturgia pode fazer, também deste momento, a
ocasião para uma experiência do sagrado, não apenas em nível individual, mas
também comunitário? Eu diria, com o silêncio. Existem duas espécies de
silêncio: um silêncio que podemos chamar ascético e um silêncio místico. Um
silêncio com o qual a criatura busca se elevar até Deus e um silêncio provocado
por Deus que se aproxima da criatura. O silêncio que segue a Comunhão é um
silêncio místico, como aquele que se observa nas teofanias do Antigo
Testamento. Após a comunhão, deveríamos repetir a nós mesmos a palavra do
profeta Sofonias (1,7): “Silêncio, diante do Senhor Deus!”. Jamais deveria
faltar algum momento, ainda que breve, de absoluto silêncio após a Comunhão.
A tradição
católica sentiu a necessidade de prolongar e dar mais espaço a este momento de
contato pessoal com o Cristo eucarístico e desenvolveu, nos séculos, sobretudo
partir do séc. XIII, o culto da Eucaristia fora da Missa. Não é um culto à
parte, separado e independente do sacramento; é um continuar a “fazer memória”
de Cristo: dos seus mistérios e das suas palavras, um modo de “receber” Jesus
sempre em maior profundidade em nossa vida. Um modo de interiorizar o mistério
recebido. A adoração eucarística é o sinal mais claro de que a humildade e o esconderijo
de Cristo na Eucaristia não nos fazem esquecer que estamos na presença do
"Santíssimo", daquele que, com o Pai e o Espírito Santo, criou o céu
e a terra .
Onde é
praticado – por paróquia, indivíduos e comunidades –, os seus frutos são
visíveis, também como momento de evangelização. Uma igreja cheia de fiéis em
perfeito silêncio, durante uma hora de adoração diante do Santíssimo exposto,
diria a quem entrasse, por acaso, naquele momento: “Aqui está Deus!”. Recordo o
comentário de um não católico, ao término de uma hora de adoração eucarística
silenciosa, em uma grande igreja paroquial dos Estados Unidos, lotada de fiéis:
“Agora entendo – disse ele a um amigo – o que vocês, católicos, querem dizer
quando falam de “presença real”!
Se há um
motivo pelo qual eu lamento o latim, é que, com o seu desaparecimento, está
desaparecendo o uso de alguns cantos nascidos para estes momentos e que têm
servido a gerações de fiéis de todas as línguas para expressar a sua fervorosa
devoção ao Jesus da Eucaristia: o Adoro te devote, o Ave verum,
o Panis angelicus. Sobrevivem quase que apenas pela música que
célebres artistas escreveram para eles.
Nós,
“ministros de Cristo e administradores dos mistérios de Deus” (1Cor 4,1), e, de
modos diversos, todo fiel empenhado com o culto da Igreja, poderíamos nos
sentir pressionados e impotentes diante de uma tarefa tão sublime. Teríamos
toda razão para isso. Como ajudar os homens de hoje a fazer, na liturgia, uma
experiência do sagrado e do sobrenatural, nós que experimentamos em nós mesmos
todo o peso da carne e a sua refratariedade ao espírito? Também aqui, a
resposta é sempre a mesma: “Tereis a força do Espírito Santo!”. Ele, que é
definido “a alma da Igreja”, é também a alma da sua liturgia, a luz e a força
dos ritos.
É um dom
que a reforma litúrgica do Vaticano II tenha posto no coração da Missa a
epiclese, isto é, a invocação do Espírito Santo: primeiro sobre o pão e o vinho
e depois sobre todo o corpo místico da Igreja. Tenho um grande respeito pela
veneranda oração eucarística do Cânon Romano e amo utilizá-la ainda, algumas
vezes, sendo aquela com que fui ordenado sacerdote. Não posso, contudo, não notar,
com pesar, a total ausência do Espírito Santo nela. No lugar da atual epiclese
consecratória sobre o pão e o vinho, encontramos, aí, a fórmula genérica:
“Dignai-vos, ó Pai, aceitar e santificar estas oferendas...”.
Isso também
foi uma triste consequência da polêmica entre Oriente e Ocidente. No passado,
levou a nós latinos a colocar o papel do Espírito Santo entre parênteses para
atribuir toda a eficácia às palavras de instituição, e levou os gregos a
colocar as palavras de instituição entre parênteses para atribuir toda a
eficácia à ação do Espírito Santo. Como se o mistério fosse realizado por uma
espécie de reação química cujo momento exato pode ser determinado.
Há
entretanto uma pérola que o Cânon Romano transmitiu de geração em geração, e
que a reforma litúrgica conservou justamente e inseriu em todas as novas
orações eucarísticas: justamente a doxologia final: “Por Cristo, com Cristo, em
Cristo, a vós, Deus Pai todo-poderoso, na unidade do Espírito Santo, toda a
honra e toda a glória, agora e para sempre”: Per ipsum, cum ipso et in
ipso est tibi, Deo Patri omnipotenti, in unitate Spiritus Sancti, omnis honor
et gloria per omnia saecula saeculorum. Esta fórmula
expressa uma verdade fundamental que São Basílio formulou no primeiro tratado
escrito sobre o Espírito Santo. No plano do ser, ou da saída das criaturas de
Deus, escreve que tudo parte do Pai, passa pelo Filho e chega a nós no
Espírito; na ordem do conhecimento, ou do retorno das criaturas a Deus, tudo
começa com o Espírito Santo, passa pelo Filho Jesus Cristo e retorna ao Pai[7].
Sendo a liturgia o momento por excelência do retorno das criaturas a Deus, tudo
nela deve partir e tomar ímpeto do Espírito Santo.
O missal
antigo continha toda uma série de orações que o sacerdote devia recitar em
preparação à Missa. Hoje, não poderíamos nos preparar melhor à celebração com
uma breve, mas intensa oração ao Espírito Santo, para que renove em nós a unção
sacerdotal e ponha em nosso coração o mesmo impulso que pôs no coração de
Cristo, para nos oferecermos ao Pai em sacrifício de suave odor? A Carta aos
Hebreus diz que, “em virtude do Espírito eterno, Cristo se ofereceu a si
mesmo a Deus como vítima sem mancha” (Hb 9,14). Oremos para que o que
aconteceu na Cabeça aconteça também em nós, membros de seu corpo.
_____________________________________
Tradução de
Fr. Ricardo Farias, ofmcap
[1] Cf.
Rudolph Otto, Il Sacro (Das Heilige, 1917).
[2] Cf.
Santo Agostinho, Confissões, VII, 10.
[3] Ib.
XI, 9.
[4] Cf.
Mario Righetti, Storia Liturgica, vol. III (La Messa), Milano 1966.
[5] Francisco
de Assis, Carta a toda a Ordem, 26-28.
[6] Cf.
Agostinho, Ep. 55, 11, 21.
[7] Cf.
Basílio de Cesareia, Tratatdo sobre o Espírito Santo XVIII, 47 (PG
32, 153).
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