Neste artigo, o arcebispo metropolitano de São Sebastião do Rio de Janeiro, cardeal Orani João Tempesta, aprofunda a vida do Pe. Cícero Romão Batista, chamado pelo povo nordestino nosso “Padim Ciço”.
Cardeal Orani João Tempesta - Vatican News
Uma carta do Secretário de Estado de Sua Santidade, o Cardeal Pietro
Parolin, datada de 20 de outubro de 2015 e dada a conhecer no dia 13 de
dezembro do mesmo ano, data da abertura das portas santas da misericórdia nas
catedrais do mundo, reconhecendo as virtudes e bem que o Padre Cícero fez ao
povo de Deus no Nordeste foi amplamente divulgada.
Com data de 20 de agosto de 2022, conforme anunciou o bispo da Diocese
de Crato (CE), Sua Excelência Dom Magnus Henrique Lopes, a Santa Sé autorizou a
abertura do processo de beatificação do Padre Cícero Romão Batista que, a
partir de agora, receberá o título de Servo de Deus.
Nosso “Padim Ciço” é assim chamado pelo povo que o admira e diz que é
porque, após a proibição de celebrar os sacramentos, ele foi chamado a ser
padrinho de batismo de muitas crianças. É com essa expressão carinhosa e
confiante que muitos de nossos irmãos, nordestinos ou não, se dirigem ao Padre
Cícero Romão Batista (1844-1934). Ele é o sacerdote sobre o qual a mídia, no
final do ano passado, tem voltado a atenção, especialmente com manchetes que
intentavam passar a mensagem de que a Igreja o tinha reabilitado. Como estamos
nos aproximando do dia 2 de fevereiro, data que marca a história da região com
a grande procissão de nossa Senhora das Candeias, em respeito ao povo e à
verdade sempre é importante aprofundar um pouco mais essa questão.
Padre Cícero nasceu no dia 24 de março de 1844, em uma casa humilde da
Rua Grande, hoje Miguel Limaverde, em Crato (CE), cidade localizada no Sopé da
Chapada do Araripe, como segundo filho do casal de agricultores Joaquim Romão
Batista e Joaquina Vicência Romana. Conta-se que, criado por duas de suas
irmãs, Mariquinha e Angélica, sempre quis ser padre e já aos doze anos, depois
de ler a vida de São Francisco de Sales, fez, piedosamente, voto de castidade.
Ingressou no seminário da Prainha, em Fortaleza, com 21 anos de idade e
aos 26 foi ordenado sacerdote, atuando um pouco na própria cidade de Crato, mas
durante 60 anos morou e atuou em Juazeiro do Norte, povoado vizinho à sua terra
natal. Aí exerceu um imenso bem à população, segundo as diretrizes pastorais de
seu tempo, com o incentivo de missões populares, novenas, terços públicos,
procissões e celebração da Missa com frequência.
Aqui é preciso lembrar que era comum a celebração da Eucaristia apenas
aos domingos durante o dia. Nelas, na maioria das vezes, as comunhões eram
raras. A Missa durante a noite, salvo a de Natal (chamada de “Missa do Galo”),
só foi possível com a reforma litúrgica promovida pelo Concílio Vaticano II (1962-1965),
assim como a comunhão frequente passou a ser estimulada, inclusive às crianças
devidamente preparadas, pelo Papa São Pio X (1903-1914), por quem o Papa
Francisco tem grande devoção. Desde que era arcebispo de Buenos Aires promovia,
anualmente, um encontro com os (as) catequistas no dia 21 de agosto, memória do
santo, que faleceu, em odor de santidade, depois de grandes trabalhos em favor
do Povo de Deus. Dessas formações de Bergoglio, resultou o livro Anunciar o
Evangelho (Campinas: Ecclesiae, 2013).
Voltando, porém, ao Padre Cícero, vê-se que ele foi fiel ao espírito de
certa recusa à obediência às ideias portuguesas em si, frutos do chamado Regime
de Padroado, no qual Igreja e Estado se achavam ligados para aderir às regras
de Roma, ou seja, havia nele plena fidelidade ao Santo Padre, o Papa, e ao
Bispo diocesano em comunhão com o Papa, alicerces da unidade a ser mantida na
Igreja sob pena de esfacelamento da face humana do Corpo místico de Cristo
prolongado na história (cf. 1Cor 12,12-21; Cl 1,24).
O Pe. Comblin, sacerdote belga que muito atuou no Nordeste na época de
Dom Helder Câmara, arcebispo de Olinda e Recife (PE), escreveu que o Padre
Cícero “dedicou-se a corrigir os vícios e os abusos morais”. Proibiu as danças,
conseguiu que os homens parassem de beber. Obrigou as prostitutas a confessar
seus pecados. Em pouco tempo, Juazeiro tornou-se um modelo de ordem e de
virtudes. Padre Cícero era no Juazeiro o equivalente ao Santo Cura D’Ars.
(Padre Cícero de Juazeiro. S. Paulo: Paulinas, 1991, apud Henrique Cristiano
José de Matos. Caminhando pela história da Igreja. Belo Horizonte: O Lutador,
1993, vol. 3, p. 172).
No entanto, na passagem do Império à República (1889), com grande
mudança no cenário político-religioso, o zeloso sacerdote não deixou de entrar
em um ritmo de fala um tanto “apocalíptica” (com anúncios de catástrofes
eminentes para o mundo). Dizia que com a nova forma de governo brasileiro o fim
do mundo estaria próximo. Daí, sempre insistir com seus fiéis sobre o Juízo
Final e a necessidade de se confessarem a fim de estarem puros na volta do
Senhor e, consequentemente, escaparem dos castigos de Deus para a humanidade
pecadora que, segundo suas pregações, não tardariam vir demonstrando a força de
Deus.
No entanto, Padre Cícero ficou mais conhecido por todo o Brasil,
especialmente a partir do ano de 1889, quando se deram os chamados “milagres da
hóstia”. Trata-se do seguinte: Maria de Araujo (1860-1914), conhecida como
“Beata”, solteira de 29 anos e costureira de prestígio, foi comungar e viu a
hóstia verter sangue, conforme ela mesma narrou ante as autoridades
eclesiásticas, no inquérito instaurado para apurar os fatos. Disse Maria que,
no dia 6 de março de 1889, “pela primeira vez, fui tomada de um rapto extático,
resultando na transformação da hóstia em sangue, tanto que além do que não
sorvi, parte caiu na toalha e parte no chão” (Maria do Carmo P. Forti. Maria de
Araujo, a beata de Juazeiro. S. Paulo: Paulinas, 1991, apud Matos, obra citada,
p. 173).
O fato, tido, então, por milagroso, se repetiu diversas vezes,
ocasionando muitas peregrinações do povo a Juazeiro e certo espanto no meio do
clero, pouco afeito a esse tipo de fenômeno que precisa ser sempre muito bem
investigado. A Igreja é prudente e não afoita na análise de assuntos como esse.
Nos meios populares, no entanto, surgiu uma possível explicação para as
ocorrências: ante a grande maldade do mundo, dentre as quais se destacou a
proclamação da República no Brasil, Nosso Senhor tinha decidido derramar o Seu
sangue uma segunda vez para redimir novamente a humanidade. Outros, mais
atentos às pregações apocalípticas do zeloso sacerdote, defendiam que o sangue
saído da hóstia na boca da jovem Maria era sinal claro do Juízo Final muito
próximo. (Cf. Matos, obra e página citadas).
Ora, parece que o Padre Cícero via, apoiado no parecer de um médico e de
um farmacêutico local, um verdadeiro milagre na hóstia sangrante, mas o Bispo,
à luz do parecer de uma comissão específica por ele nomeada, notou apenas um
fenômeno incomum, mas não milagroso. Mais: ambas as lições extraídas do
fenômeno foram (e são) exageradas e errôneas. Com efeito, o sacrifício de
Cristo na Cruz é único e supera todos os demais sacrifícios (cf. Hb 10,10), de
modo a não se poder afirmar que o Senhor voltou a derramar seu sangue pela
humanidade, como se tivesse de fazer uma reedição de sua aliança nova e eterna
(cf. Catecismo da Igreja Católica, n. 613-614). Sobre o juízo final sabemos que
ocorrerá, como professamos no Credo, mas não temos, por escolha divina, como
prever com certeza exata o dia e a hora da segunda vinda de Cristo em poder e
glória (cf. Mt 24,36).
Pois bem, foi essa interpretação popular, mas errônea dos fenômenos –
que alguns afirmavam ser apoiada pelo Padre Cícero – uma das causadoras das
reservas de Dom Joaquim José Vieira (1883-1912), Bispo do Ceará, a respeito do
famoso sacerdote. Suspeitando de heresia (negação de verdades de fé) e temendo
um cisma (rompimento com a Igreja em sua estrutura hierárquica), o Prelado
proibiu o padre de atender Confissões, pregar e orientar os fiéis. Em 1886,
Padre Cícero foi suspenso de poder celebrar Missas e, mesmo tendo recorrido à
Santa Sé, indo, inclusive, pessoalmente a Roma, jamais teve a alegria de poder
voltar a exercer o ministério sacerdotal. Contudo – isso é importante –,
segundo as notícias, ele nunca teria sido excomungado.
Além disso, outra acusação que se fez contra “Padim Ciço” foi a de ser,
na opção política, um apoiador do comunismo. Ele, porém, rebatia a acusação
dizendo que “o comunismo foi fundado pelo demônio”. E acrescentava: “Lúcifer é
o seu chefe e a disseminação de sua doutrina é a guerra do diabo contra Deus.
Conheço o comunismo e sei que é diabólico. É a continuação da guerra dos anjos
maus contra o Criador e seus filhos”. (Autorizada pelo Vaticano a reconciliação
de Padre Cícero com a Igreja, ACI Digital, 14/12/15, online).
O fato é que em meio a tudo isso, o povo nunca deixou de procurar o
padre. Ele se tornou, na verdade, o grande Patriarca do Nordeste e vivia dando
conselhos, resolvendo conflitos de várias naturezas, dando remédios certos para
muitas doenças e até ajudando na escolha de matrimônios (tinha fama de
“casamenteiro”).
Preocupava-se também com os mais pobres, especialmente os trabalhadores
e as crianças. A essas estimulava a aprenderem algum bom ofício da época a fim
de se tornarem, no campo financeiro, independentes e poderem ajudar a seus
pais. A partir de 1911, Padre Cícero, já afastado das atividades sacerdotais,
entrou na política, muito mais forçado pelas circunstâncias do que motivado por
gosto pessoal. Chegou a ser o primeiro prefeito de Juazeiro, emancipado naquele
ano, e vice-governador do Ceará por dois mandatos. Em 1914, juntando-se a
vários coronéis locais, foi contra a intervenção do Governo Federal no Estado.
Padre Cícero faleceu em 20 de julho de 1934, com 90 anos de idade, em
paz com a Igreja que tanto amou, tendo em seu sepultamento aproximadamente
60.000 pessoas, que logo passaram também a peregrinar a Juazeiro a fim de rezar
a Deus por meio do “Padim Ciço”. Fizeram, com isso, que aquela cidade se
tornasse a “cidade santa” a receber, segundo dados do site oficial do Governo
do Estado do Ceará (www.juazeiro.ce.gov.br) cerca de 2,5 milhões de pessoas por
ano.
Tudo isso motivou a Diocese de Crato, por meio do então Bispo Diocesano,
Sua Excelência Dom Fernando Panico, a pedir que a Santa Sé estudasse o caso do
Padre Cícero. Foi assim que o Papa Francisco, por meio do Eminentíssimo Senhor
Cardeal Pietro Parolin, Secretário de Estado da Santa Sé, enviou uma Carta na
qual aponta o lado benemérito de todo o apostolado que se realiza em torno da
figura do sacerdote a favor do Povo de Deus. É esse ato que a imprensa chamou
de reabilitação do Padre Cícero com a Igreja, embora, como dito, ele nunca
teria sido excomungado. Ao contrário, bons historiadores garantem que ele
morreu firme na fé católica. (Cf. Matos. Obra citada, p. 174).
Sempre foi do nosso desejo que a questão chegasse a bom termo, com a
graça de Deus, pois Ele, dentro de seus santos e sábios desígnios, nunca deixa
de atender ao seu povo sedento de santos pastores e dignos ministros, a fim de
que estes possam, nas dificuldades do dia a dia, batalhar em demanda da
Jerusalém celeste. Certamente a notícia traz alegria não só aos irmãos
nordestinos, mas a todos os brasileiros que amamos nosso País e queremos ver o
seu autêntico progresso, livre de todas as mazelas e corrupções nos vários
âmbitos em que elas se encontrem.
No Rio de Janeiro a presença nordestina é grande e a influência do Padre
Cicero se faz sentir com muita clareza, principalmente na “feira de São
Cristóvão”, que concentra as tradições nordestinas e sente-se o carinho do povo
pelo seu “padim ciço”.
Sem dúvida
que um belo sinal de trabalho evangelizador é a tradição nordestina do Padre
Cícero, e a Igreja reconheceu essa missão. Algumas questões da vida do padre
ainda estão envoltas em estudos de questões controversas, porém é inegável a
necessidade de evangelização.
Fonte: https://www.vaticannews.va/pt/igreja/news/2022-08/dom-orani-tempesta-padre-cicero-romao-batista.html
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