evento de três dias em Roma reúne agricultores, empresas, povos indígenas, sociedade civil e líderes políticos mundiais. A Irmã Smerilli, chefe da delegação da Santa Sé afirma que 70% dos lucros do comércio global de produtos agrícolas estão concentrados nas mãos de algumas poucas empresas. São desequilíbrios que impedem uma verdadeira transição para a agroecologia e sistemas alimentares sustentáveis.
Fabio Colagrande - Vatican News
A
Pré-Cúpula sobre Sistemas Alimentares da ONU, organizada pelo governo da
Itália, começou nesta segunda-feira (26), em Roma, em preparação ao evento
global de setembro em Nova York. O encontro de três dias já contou com a
participação do Papa Francisco, com uma mensagem em que denuncia a fome como um
crime aos direitos humanos, mas está sendo caracterizado como uma "Cúpula
Popular" já que além de líderes políticos e ministros, inclui jovens,
agricultores, povos indígenas, sociedade civil, pesquisadores, setor privado. O
encontro apresenta as últimas abordagens científicas para a transformação dos
sistemas alimentares, e pretende lançar uma série de novos compromissos através
de ações conjuntas e mobilizar novos financiamentos e parcerias.
Sobre as
preocupações prioritárias expressas pelo Vaticano em relação às questões que
serão tratadas e as exigências que serão feitas, além de boas práticas
sugeridas em nível global, a Irmã
Alessandra Smerilli, subsecretária do Dicastério para o Serviço de
Desenvolvimento Humano Integral, coordenadora da força-tarefa econômica da
Comissão Vaticana Covid-19, também nomeada chefe da delegação da Santa Sé na
Pré-Cúpula da ONU, oferece um quadro articulado e preciso sobre o evento de
Roma e seus objetivos:
"A Pré-Cúpula se
concentra nos sistemas alimentares, ou seja, em todos os aspectos da alimentação
e nutrição das pessoas: cultivo, colheita, embalagem, processamento,
transporte, comercialização e consumo de alimentos. É um evento de relevância
global que visa focar a atenção na necessidade de transformar os sistemas
agroalimentares para realizar a visão da Agenda 2030 para o Desenvolvimento
Sustentável, para aumentar a resiliência no contexto da pandemia de Covid-19,
fortalecer as cadeias de valores locais, melhorar a nutrição e para reutilizar
e reciclar os recursos alimentares de modo que o desperdício possa ser reduzido
pela metade.”
Quais as
recomendações da Santa Sé sobre o tema da transformação dos sistemas
alimentares?
“Temos algumas
mensagens importantes a oferecer para a discussão. Antes de mais nada, o
direito à alimentação é fundamental para a dignidade humana. Toda pessoa tem um
direito fundamental à vida e um direito às necessidades da vida com dignidade.
Quando nos reunimos para celebrar a Eucaristia, lembramos que o pão e o vinho,
e todos os outros alimentos, são primeiro ‘o fruto da terra e o trabalho das
mãos humanas’. Quando comemos juntos como uma família, estamos compartilhando a
vida, a vida em uma de suas mais belas formas de cuidados, de alimentação. Não
podemos permitir que tantos de nossos irmãos e irmãs, membros de nossa família
comum, vão para a cama com fome. Então, hoje temos a oportunidade de sair da
crise da Covid-19 melhor do que antes, transformando radicalmente nosso sistema
alimentar atual para que ele possa se tornar ambientalmente sustentável e ao
mesmo tempo atender às necessidades da população mundial de uma maneira justa.
Em nossa opinião, um sistema alimentar no mundo pós-pandêmico deve assegurar
uma abordagem holística que considere as dimensões econômica, ambiental,
social, cultural e de saúde dos alimentos. Isto inclui um profundo compromisso
com a educação alimentar. Mas deve também proteger os direitos de propriedade
das comunidades pobres e indígenas, assim como proteger os ‘bens comuns’,
aquelas florestas e terras tradicionalmente manejadas e compartilhadas por toda
uma comunidade. Além disso, é preciso construir cadeias de abastecimento e
distribuição de alimentos resistentes e sustentáveis. Isto inclui a construção
de uma infraestrutura que conecta os pequenos agricultores com os mercados
locais e nacionais. Dietas saudáveis e acessíveis também devem ser promovidas.
Os alimentos acessíveis e nutritivos devem estar disponíveis para todos.
Também é importante preservar os recursos para as gerações
presentes e futuras. Passar para um modelo circular de produção de alimentos
que regenera os sistemas naturais promove a boa saúde, melhora os ecossistemas
naturais e protege os habitats naturais para sustentar a biodiversidade. Mas um
sistema alimentar também deve ser inclusivo. Mulheres, jovens, pequenos
produtores e outros que agora são excluídos e deixados para trás precisam de um
lugar à mesa quando as políticas e decisões que os afetam são tomadas. Também
acreditamos que o importante papel da família deve ser reconhecido. Na família,
aprendemos a apreciar os frutos da terra sem abusar deles e descobrimos as
melhores ferramentas para promover estilos de vida que respeitem o bem pessoal
e coletivo. Finalmente, acreditamos que o conhecimento ancestral (por exemplo,
tribos indígenas reunindo seus alimentos nas florestas ou pastores nômades),
deve ser valorizado e respeitado. Precisamos de uma interação forte e
respeitosa entre a ciência e o conhecimento tradicional, que são ambos pilares
fundamentais nos sistemas alimentares. O conhecimento tradicional dos pequenos
agricultores e dos povos indígenas não deve ser negligenciado ou ignorado,
enquanto seu envolvimento direto permite que todos compreendam melhor suas
reais prioridades e necessidades.”
Quanto a segurança
alimentar está ligada à questão da mudança climática e, portanto, às
preocupações expressas na Laudato si’?
“No mundo de hoje,
três fatores-chave da fome podem ser compreendidos em três 3Cs: Conflito,
Covid-19 e Mudança Climática (‘cambiamento climatico’, em italiano). Seus
efeitos devastadores combinados em todas as etapas da cadeia de abastecimento
alimentar são alarmantes. Estima-se que só a pandemia, através de seus efeitos
sobre o poder de compra do consumidor, da redução da capacidade dos pequenos
agricultores de produzir alimentos e acessar mercados, do aumento do
desperdício de alimentos, entre outros, vai mergulhar 132 milhões de pessoas na
desnutrição. Naturalmente, o impacto mais duro da fome vai recair sobre aqueles
já vulneráveis ou deslocados pela guerra, conflito, desordem social e
desemprego. Estes números revelam um sistema que não funciona. Como podemos
continuar a fazer vista grossa a esta injustiça? Como o Papa Francisco observou
no Dia Mundial da Alimentação em outubro de 2020, ‘para a humanidade, a fome
não é apenas uma tragédia, mas é também vergonhosa’. De fato, como escreveu em
Fratelli tutti (189), ‘a fome é criminosa’, já que ‘a comida é um direito
inalienável’.”
Algumas estatísticas
afirmam que a pandemia vai duplicar a fome no mundo inteiro. A questão é,
portanto, também uma prioridade para a Comissão Vaticana Covid-19?
“O Papa Francisco deu
três prioridades à Comissão Vaticana Covid-19: trabalho para todos, saúde para
todos e comida para todos. Ele nos pediu que preparássemos o futuro.
Imaginar e regenerar os sistemas alimentares no futuro pós-Covid-19 requer uma
abordagem baseada na ecologia integral (cf. Laudato si', 137ff). Uma abordagem
enraizada nos princípios fundamentais da dignidade de cada ser humano, do bem
comum e do cuidado da nossa casa comum pode inspirar e orientar a ação. Ao
tomar decisões à luz desses princípios, somos orientados para ações que apoiem
um modelo regenerativo de agricultura e para sistemas alimentares de inspiração
agroecológica que beneficiem tanto as pessoas quanto o planeta.”
Um dos maiores
problemas na distribuição de alimentos é a concentração do poder de mercado
entre poucos atores, e algumas organizações da sociedade civil temem que até a
Cúpula da ONU dê muito espaço aos interesses privados... Como evitar isso?
“Um sistema alimentar
é sustentável quando fornece alimentos suficientes e nutritivos para todos sem
comprometer a saúde do planeta ou as perspectivas das gerações futuras para que
suas necessidades alimentares e nutricionais sejam atendidas. O atual sistema
alimentar global é dominado por interesses corporativos que excluem pequenos
produtores de alimentos, trabalhadores da cadeia alimentar, famílias e
consumidores de alcançar a segurança alimentar. De fato, quase 70% dos lucros do
comércio agrícola global estão concentrados nas mãos de algumas poucas
empresas. Esses desequilíbrios de poder nos prendem ao modelo atual e impedem
uma transição verdadeiramente transformadora para a agroecologia e sistemas
alimentares sustentáveis. Eles também resultam em salários insuficientes para
aqueles que trabalham no setor alimentício e oferecem oportunidades para
especulação financeira para dominar os preços. É importante que os sistemas
alimentares estejam agora no centro das atenções internacionais e que haja uma
conversa global sobre isso. A Santa Sé está participando do processo
para assegurar que os interesses de todos sejam respeitados, mas especialmente
aqueles que correm o risco de serem deixados de fora. Por outro lado, sem se
envolver com os grandes atores do setor privado, a transformação dos sistemas
alimentares não vai acontecer. Devemos estar vigilantes sobre o processo.”
Fonte: Vatican News
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