“E
vós, quem dizeis que eu sou? Jesus Cristo verdadeiro Deus”, foi o tema da
terceira meditação quaresmal do frei Raniero Cantalamessa
“E VÓS, QUEM DIZEIS QUE EU SOU?”
Jesus Cristo “verdadeiro Deus”
Terceira Pregação da Quaresma
Fr. Raniero Cantalamessa, OFMCap.
Recordemos brevemente o tema e o espírito destas
meditações quaresmais. Propusemo-nos em reagir à tendência difundidíssima de
falar da Igreja “etsi Christus non daretur”, como se Cristo não existisse, como
se fosse possível entender tudo dela, prescindindo dele. Propusemo-nos, porém,
em reagir a isso de um modo diverso do habitual: não buscando convencer o mundo
e seus meios de comunicação de erro, mas renovando e intensificando a nossa fé
em Cristo. Não em chave apologética, mas espiritual.
Para falar de Cristo, escolhemos a via mais segura,
que é a do dogma: Cristo verdadeiro homem, Cristo verdadeiro Deus, Cristo uma
só pessoa. Aquela do dogma é uma via por nada velha e ultrapassada. “A
terminologia dogmática da Igreja primitiva – escreveu Kierkegaard, um dos
maiores representantes do pensamento moderno existencialista – é como um
castelo encantado, onde repousam em um sono profundo os príncipes e as
princesas mais graciosos. Basta apenas despertá-los, para que se levantem em
toda a sua glória”[1].
Assim, trata-se justamente disso: de despertar os
dogmas, de infundir neles vida, como quando o Espírito entrou nos ossos
ressequidos vistos por Ezequiel e “eles viveram e se puseram de pé” (Ez 37,10).
Na vez passada, buscamos fazer isso, em relação ao dogma de Jesus “verdadeiro
homem”; hoje, queremos fazê-lo com o dogma de Cristo “verdadeiro Deus”.
O dogma de Cristo “verdadeiro Deus”
Em 111 ou 112 depois de Cristo, Plínio, o Jovem,
governador da Bitínia e do Ponto, escreveu uma carta ao Imperador Trajano,
pedindo-lhe indicações sobre como se comportar nos processos instaurados contra
os cristãos. Segundo as informações tomadas – escreve ao Imperador – “toda a
sua culpa ou erro consistia em se reunirem habitualmente em um dia estabelecido
antes da aurora e entoar, em coros alternados, um hino a Cristo como a um
Deus”: carmen Christo quasi Deo dicere[2].
Estamos na Ásia Menor, há poucos anos da morte do último apóstolo, João, e os
cristãos proclamam já no canto a divindade de Cristo! A fé na divindade de
Cristo nasce com o nascer da Igreja.
Mas o que é desta fé hoje? Façamos, primeiramente,
uma breve reconstrução da história do dogma da divindade de Cristo. Ele foi
sancionado solenemente no Concílio de Niceia de 325, com as palavras que
repetimos no Credo: “Creio em um só Senhor, Jesus Cristo... Deus verdadeiro de
Deus verdadeiro, gerado, não criado, consubstancial ao Pai”. Para além dos
termos usados, o sentido profundo da definição de Niceia – como se deduz de
Santo Atanásio, que foi sua testemunha e intérprete mais fidedigno – era que,
em toda língua e em toda época, Cristo deve ser reconhecido como Deus no
sentido mais forte e mais alto que a palavra “Deus” tem em determinada língua e
cultura, e não em qualquer outro sentido derivado e secundário.
Foi preciso quase um século de assentamento antes
que esta verdade fosse recebida, na sua radicalidade, por toda a cristandade.
Uma vez superados os refluxos de arianismo devidos à chegada de povos bárbaros
que tinham recebido a primeira evangelização dos heréticos (Godos, Visigodos e
Longobardos), o dogma se tornou patrimônio pacífico de toda a cristandade, seja
oriental como ocidental.
A Reforma Protestante o manteve intacto, e mais,
aumentou sua centralidade; contudo, inseriu nele um elemento que, mais tarde,
dará margem a prolongamentos negativos. Para reagir ao formalismo e ao
nominalismo que reduziam os dogmas a exercícios de virtuosismo especulativo, os
reformadores protestantes afirmam: “Conhecer Cristo significa reconhecer os
seus benefícios, não indagar as suas naturezas e os modos da encarnação”[3].
O Cristo “para mim” se torna mais importante do que o Cristo “em si”. Ao
conhecimento objetivo, dogmático, opõe-se um conhecimento subjetivo, íntimo; ao
testemunho exterior da Igreja e das próprias Escrituras sobre Jesus, antepõe-se
o “testemunho interior”, que o Espírito Santo presta a Jesus no coração de cada
fiel.
O Iluminismo e o racionalismo encontraram nisso o
terreno adequado para a demolição do dogma. Para Kant, o que conta é o ideal
moral proposto por Cristo, mais do que a sua pessoa. A teologia liberal do
século XIX reduz praticamente o cristianismo apenas à dimensão ética e,
particularmente, à experiência da paternidade de Deus. Despoja-se o Evangelho
de todo o sobrenatural: milagres, visões, a ressurreição de Cristo. O cristianismo
torna-se apenas um sublime ideal ético que pode prescindir da divindade de
Cristo e, até mesmo, da sua existência histórica. Gandhi, que, infelizmente,
conhecera o cristianismo nesta versão redutiva, escreveu: “Não me importaria
nem mesmo se alguém demonstrasse que o homem Jesus, na realidade, jamais viveu,
e que o que se lê nos evangelhos não é nada mais do que fruto da imaginação do
autor. Apesar de que o sermão da montanha permanecesse verdadeiro aos meus
olhos”6.
A versão mais próxima a nós desta tendência
redutiva do cristianismo é aquela popularizada por Bultmann, em nome, desta
vez, da demitologização: “A fórmula ‘Cristo é Deus’ – ele escreve – é falsa, em
todo sentido, quando ‘Deus’ é considerado como ser objetivável, seja ela
entendida segundo Ário ou segundo Niceia, em sentido ortodoxo ou liberal. Ela
está correta se ‘Deus’ for entendido como o evento da atuação divina”[4].
Em palavras menos veladas: Cristo não é Deus, mas em
Cristo há (ou opera) Deus. Estamos bem distantes,
como se vê, do dogma definido em Niceia. Diz-se de querer, deste modo,
interpretar o dogma antigo com categorias modernas, mas, na realidade, não se
faz outra coisa a não ser repropor, às vezes nos mesmos termos, soluções
arcaicas (Paulo de Samósata, Marcelo de Ancira, Fotino), já avaliadas e
rejeitadas pela consciência da Igreja.
Se,
das discussões dos teólogos, considerando-se diversas reflexões, passa-se ao
que, da divindade de Cristo, pensa o povo comum nos países cristãos, fica-se
sem palavras. Após um concílio local dominado pelos opositores de Niceia
(Rimini, ano 359), São Jerônimo escreveu: O mundo inteiro “emitiu um gemido e
se surpreendeu em se rever ariano”[5].
Nós teríamos muito mais razão que ele de gemer e fazer nossa a sua exclamação
de estupor.
Cristo “verdadeiro Deus” nos Evangelhos
Mas agora,
devemos ter fé em nosso intuito. Por isso, deixemos de lado o que pensa o mundo
e busquemos despertar em nós a fé na divindade de Cristo. Uma fé luminosa, não
desfocada, ao mesmo tempo objetiva e subjetiva, isto é, não só crida, mas
também vivida. Também vivida, a Jesus não interessa tanto o que dizem dele “os
homens”, mas o que dizem dele os seus discípulos. A pergunta está perenemente
no ar: “E vós, quem dizeis que eu sou?” (Mt 16,15). É a ela que queremos buscar
responder nesta meditação.
Partamos
justamente dos evangelhos. Nos sinóticos, a divindade de Cristo jamais é declarada abertamente,
mas é continuamente subentendida.
Recordemos algumas frases de Jesus: “O Filho do Homem tem, na terra, autoridade
para perdoar pecados” (Mt 9,6); “Ninguém conhece o Filho, senão o Pai, e
ninguém conhece o Pai, senão o Filho” (Mt 11,27); “O céu e a terra passarão,
mas as minhas palavras jamais passarão” (frase esta, presente idêntica em todos
os três Sinóticos)[6].
“O Filho do Homem é senhor também do sábado” (Mc 2,28); “Quando o Filho do
Homem vier em sua glória, acompanhado de todos os anjos, ele se assentará em
seu trono glorioso. Todas as nações da terra serão reunidas diante dele, e ele
separará uns dos outros, assim como o pastor separa as ovelhas dos cabritos”
(Mt 25,31-32). Quem, a não ser Deus, pode perdoar os pecados em nome próprio e
se proclamar juiz final da humanidade e da história?
Assim como
basta um fio de cabelo ou uma gota de saliva para reconstruir o DNA de uma
pessoa, assim, basta apenas uma linha do Evangelho, lida sem preconceitos, para
reconstruir o DNA de Jesus, para descobrir o que ele pensava de si mesmo, mas
não podia dizer abertamente para não ser incompreendido. A transcendência
divina de Cristo literalmente transpira de cada página do Evangelho.
Mas é
sobretudo João quem fez da divindade de Cristo o objetivo primário do seu evangelho,
o tema que tudo unifica. Ele conclui o seu evangelho dizendo: “Estes (sinais),
porém, foram escritos para que creiais que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus, e
para que, crendo, tenhais a vida em seu nome” (Jo 20,31), e conclui a sua
Primeira Carta quase com as mesmas palavras: “Eu vos escrevo estas
coisas, a vós que credes no nome do Filho de Deus, para que saibais que tendes
a vida eterna” (lJo 5,13).
Um dia, como
tantos outro, estava celebrando a Missa em um mosteiro de clausura. O trecho
evangélico da liturgia era a página de João, em que Jesus pronuncia
repetidamente o seu “Eu Sou”: “De fato, se não crerdes que ‘Eu Sou’, morrereis
nos vossos pecados... Quando tiverdes levantado o Filho do Homem, então
sabereis que ‘Eu Sou’... Antes que Abraão existisse, Eu Sou” (Jo 8,24.28.58). O
fato de que as palavras “Eu Sou”, contrariamente a toda regra gramatical, no
lecionário fossem escritas com duas maiúsculas, unido certamente a alguma outra
causa mais misteriosa, fez acender uma fagulha. Aquela palavra “explodiu”
dentro de mim.
Eu sabia, dos
meus estudos, que no evangelho de João havia numerosos “Eu Sou”, ego
eimi, pronunciados por Jesus. Sabia que isso era um fato importante para a
sua cristologia; que, com esses, Jesus se atribui o nome que Deus reivindica
para si em Isaías: “Para que saibais e acrediteis em mim, e compreendais que Eu
sou” (Is 43,10). Mas o meu conhecimento era literário e inerte, e não suscitava
emoções particulares. Naquele dia, era algo totalmente diverso. Estávamos no
tempo pascal e parecia que o próprio Ressuscitado proclamasse o seu nome divino
no céu e na terra. O seu “Eu Sou!” iluminava e enchia o universo. Eu me sentia
muito pequeno, como alguém que assiste, por acaso e distante, uma cena
improvisa e extraordinária, ou a um grandioso espetáculo da natureza. Não se
tratou mais do que uma simples emoção de fé, nada mais, porém, daquelas que,
quando passam, deixam no coração uma marca indelével.
É de causar
estupor a iniciativa que o Espírito de Jesus permitiu a João levar a termo. Ele
abraçou os temas, símbolos, expectativas, enfim tudo aquilo que havia de
religiosamente vivo, seja no mundo judaico, como no helenístico, pondo tudo
isso a serviço de uma única ideia, melhor, de uma única pessoa: Jesus Cristo é
o Filho de Deus e o Salvador do mundo. Ele aprendeu a língua dos homens do seu
tempo, para gritar em seu meio, com todas as próprias forças, a única verdade
que salva, a Palavra por excelência, “o Verbo”.
Somente uma
certeza revelada, que tem por detrás de si a autoridade e a própria força de
Deus e do seu Espírito, podia ser explicada em um livro com tal insistência e
coerência, chegando, de inúmeros pontos diversos, sempre à mesma conclusão: a
identidade total da natureza entre o Pai e o Filho: “Eu e o Pai somos um” (Jo
10,30). Um “só” (neutro unum),
note-se bem, não uma só pessoa (masculino unus)!
“Corde creditur: crê-se
com o coração”
Assim como
para a humanidade, também a propósito da divindade de Cristo, agora podemos
mostrar como o antigo dogma, objetivo e ontológico, é capaz de acolher e
valorizar o dado moderno subjetivo e funcional, enquanto, como vimos, o
contrário foi um tanto difícil. Nenhuma das chamadas “cristologias a partir de
baixo”, aquelas, para entendermos, que partem do Jesus “profeta escatológico e
sumo revelador do Pai”, ou do Cristo, “o homem em quem a consciência de Deus
atingiu o seu máximo nível” (F. Schleiermacher), ou ainda, do Cristo “pessoa
humana em quem subsiste a natureza divina” (e não pessoa divina que subsiste em
uma natureza humana!): nenhuma, repito, destas cristologias conseguiu se elevar
até abraçar o verdadeiro mistério da fé cristã e salvaguardar a plena divindade
de Cristo. A razão do insucesso é explicada por Jesus e foi bem compreendida
por João, que a expõe: “Ninguém subiu ao céu, senão aquele que desceu do céu”
(Jo 3,13). De fato, è possível para Deus, se assim o quiser, fazer-se homem,
mas não é possível ao homem fazer-se Deus!
Com estas
premissas, podemos voltar a valorizar toda a dimensão subjetiva e personalista
do dogma: o Cristo “para mim”, posto em primeiro plano pelos Reformadores, o
Cristo conhecido por seus benefícios e pelo testemunho interior do Espírito.
Este é o melhor fruto do ecumenismo, o das “diferenças reconciliadas”, não
opostas, como diz o nosso Santo Padre. Não é uma concessão “pro
bono pacis”, mas uma necessidade e um enriquecimento recíproco. Todos nós
precisamos dar à nossa fé esta dimensão pessoal, íntima, para que ela não seja
repetição morta de fórmulas antigas ou modernas. Sobre este ponto, somos todos
chamados em causa: católicos, ortodoxos e protestantes, da mesma maneira.
São Paulo diz
que “é com o coração que se crê para a justiça; e com a boca, professa-se a fé
para a salvação” (Rm 10,10). “É das raízes do coração que sobe a fé”, comenta
Agostinho[7].
Na visão católica, como naquela ortodoxa, e também, em seguida, naquela
protestante, a profissão da
reta fé, isto é, o segundo momento deste processo, frequentemente tomou tanto
relevo ao ponto de deixar na sombra aquele primeiro momento que se desenvolve
nas profundidades escondidas do coração. Todos os tratados De
fide, escritos após Niceia, tratam da ortodoxia da fé; hoje, dir-se-ia da fides
quae, não da fides
qua, das coisas a serem cridas, não do ato pessoal do crer.
Este primeiro
ato de fé, justamente porque acontece no coração, é um ato “singular”, que pode
ser feito apenas pelo indivíduo, em total solidão com Deus. No evangelho de
João, ouvimos Jesus fazer repetidamente a pergunta: “Crês isto?” (Jo 9,35; Jo
11,26); e, cada vez, esta pergunta suscita do coração o grito da fé: “Sim,
Senhor, eu creio!”. Também o símbolo de fé da Igreja começa assim, no singular:
“Creio”, não: “Cremos”.
Também nós
devemos aceitar passar por este momento, de se submeter a este exame. Se, à
pergunta de Jesus: “Crês isto?”, alguém responde imediatamente, sem nem pensar:
“Claro que creio”, e acha até estranho que uma pergunta semelhante seja
dirigida a um fiel, a um sacerdote ou a um bispo, quer dizer provavelmente que
ainda não descobriu o que significa realmente crer, jamais experimentou a
grande vertigem da razão que precede o ato de fé. A divindade de Cristo é o cume
mais alto, o Evereste da fé. Crer em um Deus nascido em um estábulo e morto em
uma cruz! Isto é muito mais exigente do que crer em um Deus distante, que cada
um pode representar ao próprio gosto.
É preciso
começar a demolir em nós, fiéis e homens da Igreja, a falsa persuasão de que
estamos bem no que se refere à fé e que, no mais, devemos trabalhar ainda pela
caridade. Talvez não seja um bem, quem sabe, por um pouco de tempo, não querer
demonstrar a ninguém, mas interiorizar a fé, redescobrir as suas raízes no
coração!
Devemos
recriar as condições para uma retomada da fé na divindade de Cristo. Reproduzir
o impulso de fé do qual nasceu o dogma de Niceia. O corpo da Igreja outrora
produziu um esforço supremo, com o qual se ergueu, na fé, acima de todos os sistemas
humanos e de todas as resistências da razão. A maré da fé uma vez subiu a um
nível máximo e sua marca permaneceu na rocha. No entanto, é preciso que se
repita a subida, não basta a marca. Não basta repetir o Credo de Niceia; é
preciso renovar o impulso de fé que então se teve na divindade de Cristo e do
qual não houve igual nos séculos.
A praxe da
Igreja (e não só da Igreja Católica!) prevê uma profissão de fé da parte do
candidato, antes de receber o mandato de ensinar teologia. Esta profissão de fé
tem comportado, frequentemente, além da recitação do credo, o compromisso de
ensinar algumas coisas precisas – e a não ensinar outras igualmente precisas –
que, naquele momento da história, eram temas particularmente sensíveis.
Pensemos no juramento contra o modernismo.
A mim parece
que se deveria verificar sobretudo uma coisa: que quem ensina teologia aos
futuros ministros do Evangelho creia firmemente na divindade de Cristo.
Verificar isto mediante um discernimento fraterno e franco, melhor do que com
um juramento. Houve toda uma geração de sacerdotes após o Concílio (certamente,
não por
causa do Concílio!) que saiu do seminário e se apresentou à ordenação
com ideias muito confusas e desfocadas sobre quem é o Jesus que devia anunciar
ao povo e tornar presente no altar na Missa. Muitas crises sacerdotais, estou
convencido, começaram e começam aqui.
Ecumenismo e
evangelização
O que
evidenciamos tem importantes consequências também para o ecumenismo cristão.
Existem, de fato, dois ecumenismos possíveis: o da fé e o da incredulidade; um
que reúne todos aqueles que creem que Jesus é o Filho de Deus e que Deus é Pai,
Filho e Espírito Santo, e um que reúne todos aqueles que se limitam a
“interpretar” (cada um à própria maneira e segundo o próprio sistema filosófico)
estas coisas. Um ecumenismo no qual, no máximo, todos creem as mesmas coisas
porque ninguém crê mais realmente em nada, no sentido forte da palavra “crer”.
A distinção
fundamental dos espíritos, no âmbito da fé, não é a que distingue entre
católicos, ortodoxos e protestantes, mas a que distingue aqueles que creem no
Cristo Filho de Deus e aqueles que não creem; segundo São Paulo, “todos os que,
em todo lugar, invocam o nome de Nosso Senhor Jesus Cristo, Senhor deles e
nosso” (1Cor 1,2), e os que não o invocam.
Há uma
unidade nova e invisível que vai se formando e que passa pelas diversas
Igrejas. Esta unidade invisível e espiritual, por sua vez, tem necessidade
vital do discernimento da teologia e do magistério, para não cair no perigo do
fundamentalismo ou na vã presunção de poder formar uma espécie de Igreja
transversal, fora das Igrejas existentes e, particularmente, da Igreja
Católica. Mas, uma vez vislumbrada e superada esta tentação, trata-se de um
fato que não podemos mais nos permitir ignorar.
O verdadeiro
“ecumenismo espiritual” não consiste somente em rezar pela unidade dos
cristãos, mas em compartilhar a mesma experiência do Espírito Santo. Consiste
naquela que Agostinho chama “societas sanctorum”, a comunhão dos santos, que,
às vezes, dolorosamente, pode não coincidir com a “communio sacramentorum”, ou
seja, compartilhar dos mesmos sinais sacramentais.
A fé na
divindade é importante sobretudo em vista da evangelização. Existem
edifícios ou estruturas metálicas feitas de forma que, se você tocar em um
determinado ponto ou levantar uma determinada pedra, tudo desmorona. Assim é o
edifício da fé cristã, e esta sua “pedra angular” é a divindade de Cristo.
Removida esta, tudo se desagrega e desmorona, começando pela fé na Trindade. De
quem se forma a Trindade, Cristo não é Deus? Não por nada, basta se por entre
parênteses a divindade de Cristo, que se põe entre parênteses também a
Trindade.
Santo
Agostinho dizia: “Não é grande coisa crer que Jesus morreu; nisto creem até os
pagãos e os ímpios; todos creem nisso. Mas é algo realmente grande crer que ele
ressuscitou”. E concluía: “A fé dos cristãos é a ressurreição de Cristo”[8].
A mesma coisa se deve dizer da humanidade e divindade de Cristo, cujas morte e
ressurreição são as respectivas manifestações. Todos creem que Jesus seja
homem; o que faz a diversidade entre crentes e não crentes é crer que ele
também seja Deus. A fé dos cristãos é a divindade de Cristo!
“Conhecer Cristo é
reconhecer os seus benefícios”
“Conhecer
Cristo é reconhecer os seus benefícios”, nós ouvimos. Concluamos justamente
recordando dois destes benefícios, que são os mais capazes de responder às
necessidades profundas do homem de hoje e de sempre: a necessidade de sentido e
a necessidade de vida.
Não é verdade
que o homem moderno deixou de se propor a questão sobre o sentido da vida. Há
alguns anos, um conhecido intelectual escreveu: “A religião morrerá. Não é um
desejo, muito menos uma profecia. Já é um fato que está aguardando seu cumprimento...
Passada a nossa geração e talvez aquela de nossos filhos, niguém mais
considerará a necessidade de dar um sentido à vida um problema realmente
fundamental... A técnica levou a religião ao seu crepúsculo”[9].
Claro, não se interroga sobre o sentido último da vida quem se prestou a outras
coisas... Mas, quando estas vão desaparecendo – juventude, saúde, fama – muitos
voltam a se propor aquela pergunta. Fazem-na ainda mais neste tempo de pandemia
em que, fechados frequentemente em casa, homens e mulheres finalmente têm tido
o tempo de refletir e se interrogar.
Há uma
pintura, dentre as mais famosas da arte moderna, que representa visivelmente
aonde leva a convicção de que a vida não tem sentido. Em um fundo avermelhado
que inspira angústia, um homem atravessa correndo uma ponte, passando por dois
indivíduos que parecem alheios e e indiferentes a tudo; tem os olhos
rabiscados; com as mãos em torno à boca, emite um grito e se entende que é um
grito de desespero.
Jesus disse:
“Eu sou a luz do mundo. Quem me segue, não caminha na escuridão” (Jo 8,12).
Quem crê em Cristo, tem a possibilidade de resistir à grande tentação da falta
de sentido da vida, que frequentemente leva ao suicídio. Quem crê em Cristo não
caminha nas trevas: sabe de onde vem, sabe para onde vai e o que fazer enquanto
isso. Sobretudo, sabe que é amado por alguém e que este alguém deu a vida para
demonstrá-lo!
Jesus também
disse: “Eu sou a ressurreição e a vida. Quem crê em mim, ainda que tenha
morrido, viverá” (Jo 11,25). E o evangelista, mais tarde, escreverá aos
cristãos: “Eu vos escrevo estas coisas, a vós que credes no nome do Filho de
Deus, para que saibais que tendes a vida eterna (...). Ele é o verdadeiro Deus
e a Vida eterna” (1Jo 5,13.20). justamente porque Cristo é “verdadeiro
Deus”, é também “vida eterna” e dá a vida eterna. Isto não nos tira
necessariamente o medo da morte, mas dá ao fiel a certeza de que a nossa vida
não termina com ela.
Repensemos em
algo de tudo isso quando, domingo, proclamamos o segundo artigo do Credo:
Creio em um
só Senhor, Jesus Cristo,
Filho
unigênito de Deus,
nascido do
Pai antes de todos os séculos:
Deus de Deus,
luz da luz,
Deus
verdadeiro de Deus verdadeiro,
gerado, não
criado,
consubstancial
ao Pai.
Por ele todas
as coisas foram feitas.
__________________________________________________
Traduzido do
italiano por P. Ricardo Faria, ofmcap
[1] Cf. Søren
Kierkegaard, Diario,
II, A 110 (anno 1837).
[2] Cf. Plínio, o
Jovem, Epistularum
liber, X,96.
[3] Cf. Filipe
Melâncton, Loci
theologici, in Corpus
Reformatorum, Brunsvigae 1854, p. 85.
[4] Cf. R. Bultmann, Glauben
und Verstehen, II, Tübingen 1938, p. 258.
[5] Cf. S. Jerônimo, Dialogus
contra Luciferianos, 19 (PL 23, 181): «Ingemuit totus orbis et arianum
se esse miratus est».
[6] Mc 13,31; Mt
24,35; Lc 21,33.
[7] Cf. Santo
Agostinho, Comentário
ao Evangelho de João, 26,2 (PL 35,1607).
[8] Cf. Santo
Agostinho, Enarrationes
in Psalmos 120, 6.
[9] Na revista “MicroMega”
2, 2000, pp. 187s.
Fonte: Vatican News
Nenhum comentário:
Postar um comentário