Ao finalizar a entrevista,
o bispo eleito de Cachoeiro do Itapemirim enfatiza que o Brasil foi terra
missionária, é fruto de missão e já recebeu muitos missionários estrangeiros.
Segundo o dom Luiz, o maior grupo missionário em Moçambique é do Brasil. “Isto mostra uma Igreja se abrindo para a
missão e repartindo da sua pobreza; isso só enriquece a nossa Igreja” ,
pontua.
E conclui dizendo que “Eu fiquei em Moçambique por 20 anos e agora
volto para o Brasil; tenho que reaprender muita coisa, mas penso que posso
partilhar a experiência que trago e posso animar muitos a realizarem essa mesma
experiência: ir ao encontro das pessoas e daqueles que mais
precisam. Assim como tenho para aprender, também tenho para partilhar” .
Leia abaixo a íntegra da entrevista:
Com que sentimentos o
senhor encerra este período de oito anos como bispo em Moçambique? Qual o maior
legado recebido deste povo irmão?
Em primeiro lugar, muita
alegria: desde a minha juventude, no início da minha formação, eu tive esse
sonho de ser missionário Ad Gentes no
continente africano. Quando pedimos muito alguma coisa a Deus, a gente tem que
tomar cuidado porque ele atende! Eu pedi e, para minha felicidade, ele me
enviou para essa missão. O sentimento é de muita gratidão por tudo o que
aprendi na África e por todas as pessoas que eu conheci. Deus permitiu-me fazer
essa experiência por quase vinte anos.
Se você me perguntar se estou feliz de sair
de lá, eu digo que não estou; ao mesmo tempo, estou tranquilo: a missão é de
Deus, ela não é nossa; somos instrumentos e em qualquer lugar que estejamos
podemos realizar a missão de Deus.
A região de Cabo Delgado é
conhecida pela história de convivência e pluralismo religioso. Na sua
experiência, como o conflito que tomou dimensões trágicas foi sendo tecido no
cotidiano das populações da região?
Desde o tempo em que cheguei a Cabo Delgado,
em Moçambique, no início de 2001, nunca ouvi falar que tivesse havido algum
problema entre as religiões, seja ele desentendimento, guerra ou litígio. Pude
experimentar na minha própria vivência do dia a dia quanto respeito há entre as
religiões, não só entre os líderes maiores, mas também nas aldeias, com o povo.
É dever do bispo visitar toda a diocese, e eu
sempre preferi visitar aquelas aldeias nunca antes visitadas pelos bispos
anteriores, para ter contato com o povo, conhecê-los, e eles também a
mim. Em todos os lugares que fui, ao celebrar a missa, debaixo das
árvores, sempre havia três, cinco ou dez muçulmanos que ficavam durante toda a
missa, com todo respeito. Normalmente, as pessoas oferecem presentes ao bispo,
como por exemplo, galinha, cana, amendoim, cabrito, e sempre os muçulmanos
levavam também seus presentes. Esta é uma prova que há respeito!
Inclusive, em alguns lugares eles diziam que
estavam também a receber o bispo deles! Nunca presenciei qualquer problema em
Cabo Delgado. Claro que pode ter acontecido algum caso de desentendimento, mas
sem qualquer expressão que comprometesse o bom relacionamento entre nós.
Nos últimos anos, tínhamos um encontro
regular entre os líderes religiosos, que contava com a presença dos dois
maiores líderes dos muçulmanos, o Congresso Islâmico e o Conselho Islâmico.
Também houve boa colaboração entre a Igreja Católica e o Concelho Cristão de
Moçambique: no tempo da guerra, lançamos documentos em conjunto pedindo a paz,
fizemos caminhadas pela paz.
Desde o início, tanto os muçulmanos quanto
nós, denunciamos que os reais motivos desta guerra são questões econômicas: os
terroristas estão utilizando o nome de Alá e do Estado Islâmico para encobrir
os verdadeiros motivos desta guerra, que não são religiosos.
Para o senhor, quais razões
levam a este conflito tão grave não ter a visibilidade que mereceria ter?
Penso que não existe apenas uma motivação,
para a guerra. O extremo norte de Moçambique foi sempre esquecido pelo Estado,
é uma região muito pobre, a pobreza é um componente importante. As etnias são
outra questão: naquela região há uma que prevalece sobre a outra, tendo, por
exemplo, com maior acesso à educação. Outros componentes também lançaram
combustível para a guerra: há um certo extremismo de grupos que vieram de fora
e foram formadas em outros ambientes, não aceitaram o Islã praticado em Cabo
Delgado e quiseram fazer algo diferente.
Com a soma de tudo, eclode-se a guerra que já
leva três anos e quatro meses. O motivo principal para muitos, e para mim,
continua sendo o econômico, por causa das riquezas naturais de Cabo Delgado.
São os mega projetos que são
pensados para esta região que seriam a principal nervura desses conflitos?
Com certeza. Cabo Delgado é rica em gás e
petróleo, rubi da melhor qualidade, mármore, pedras semi preciosas, ouro; duas
empresas estrangeiras exploram o granito; a madeira já foi quase toda exportada
pelos chineses. Há uma província rica em recursos, um povo muito pobre, e
grandes multinacionais chegando para fazer a exploração.
Em todas as regiões de conflito, em África,
encontra-se riqueza de recursos naturais e grandes empresas estrangeiras
explorando-os. Estes elementos andam juntos: recursos naturais, empresas
multinacionais e guerras.
Diversas universidades e
institutos, como o IESE, têm feito reflexões sobre o que tem ocorrido na
região. Que instituições e grupos regionais e internacionais têm ajudado a
reverberar as notícias e o drama de Cabo Delgado?
No início da guerra, era proibido falar sobre
ela, houve a tentativa de escondê-la. Os jornalistas não tinham licença para ir
a Cabo Delgado e, muito menos, para a região norte da província, onde a guerra
acontecia. Alguns foram presos, dois deles por mais de dois meses, e hoje
estão respondendo a processos. Muitos não receberam licença para realizar a cobertura
da guerra; há um jornalista de uma rádio comunitária, daquela região, que está
desaparecido desde o dia 07 de abril de 2020 e não temos notícia se está vivo
ou morto.
Com a censura aos jornalistas, a visibilidade
sobre a guerra foi dada pela Igreja, denunciando e alertando no Moçambique e no
mundo sobre o conflito. Isto é reconhecido pelos meios de comunicação, por
várias fontes e autoridades em Moçambique.
O Papa visitou Moçambique, em 2019, e falou
sobre a guerra; sua visita a Pemba precisou ser cancelada e um dos motivos foi
a questão da segurança. Com a intensificação da guerra em 2020, o Papa passou a
rezar por Cabo Delgado; telefonou-me, também, em agosto, e esse telefonema
repercutiu. No final do ano, fez uma doação para ser aplicada aos deslocados,
que está sendo utilizada para a construção de dois hospitais nas regiões de
assentamentos, e no fim do ano chamou-me até Roma para conversarmos, querendo
saber de perto sobre a situação da guerra. A visibilidade que o Papa deu à
guerra foi impressionante.
Uma vez que outras pessoas e organizações
também começaram a se interessar, o parlamento da União Europeia quis fazer um
encontro de duas comissões importantes do parlamento, onde fui convidado para
falar sobre a guerra. O apoio internacional apareceu em 2020 porque, até então,
o governo não o pedia, uma vez que discursavam serem auto suficientes. Mas a
situação de uma guerra de caráter internacional não se resolve facilmente
somente dentro de um país.
Quando o parlamento da União Europeia
ofereceu ajuda, o governo solicitou três tipos de colaboração econômica: para
formação dos seus militares, para apoio logístico e para apoio
humanitário. A União Europeia, a Comunidade de Desenvolvimento da África
Austral e a União Africana entraram no debate e estamos esperando que a ajuda
concreta chegue, de forma mais eficaz.
No tempo do conflito entre
Renamo e Frelimo, o conflito não era considerado uma guerra civil, e sim
‘banditismo social’. Parece que este tema está sendo utilizado também em Cabo
Delgado. O Estado classificou o conflito como ‘banditismo social’ a fim de
terceirizá-lo? Como têm sido percebidas e avaliadas, pelas autoridades do
país e internacionalmente, as ações da Igreja, em auxílio às populações
atingidas e na denúncia do conflito?
Houve uma negação no começo dos conflitos; as
autoridades disseram tratá-lo como problema entre as religiões, esperando que a
resolução ocorresse entre elas. Alguns grupos muçulmanos defendiam uma certa
radicalização do islamismo praticado em Cabo Delgado e a população começou a
alertar sobre a atuação destes indivíduos.
Em seguida, as autoridades governamentais
passaram a interpretar o problema como banditismo; mas a situação cresceu ao
ponto de ficar impossível escondê-la, e só então o governo reconheceu a
situação de guerra, com infiltração externa e cooptação de muitos jovens
nacionais. Sem estudo, dinheiro e emprego, os jovens são facilmente cooptados.
Inicialmente, houve a negação e a tentativa
de terceirizar a guerra, porém hoje este tipo de negação já não é mais possível.
É importante salientar que a divulgação realizada pelo Papa foi fundamental,
para que as autoridades se dessem conta do problema real.
Na encíclica Fratelli Tutti,
Papa Francisco comenta que a Igreja se encontra a viver e atuar, hoje, numa
“terceira guerra mundial por pedaços”. Fala de partes da humanidade que seriam
“sacrificáveis”, muitas vezes pelos interesses do lucro e de uma economia -como
no caso do extrativismo predatório- que mata. Qual é a missão da Igreja neste
cenário?
Mais do que nunca, a Igreja é chamada hoje a
ser compassiva, misericordiosa e profética; essas são três palavras chaves. A
Igreja teve sempre, na história, um papel muito importante, sobretudo nas
regiões mais pobres do mundo. Sempre foi uma voz muito forte em defesa da
população mais vulnerável.
O que o Papa diz na encíclica é verdade, a
terceira guerra chegou como guerra fragmentada, que diz respeito ao abismo que
há entre ricos e pobres, onde há exploração predatória do meio ambiente. A
falta de cuidado com a Casa Comum tem provocado o sacrifício da maior parte da
humanidade. Moçambique, por exemplo, está entre os dez países mais pobres
do mundo. Desde que cheguei lá, há vinte anos, vejo a população cada vez mais
pobre, gradativamente empobrecida.
A invasão predatória tornou as terras
improdutivas, uma vez que elas são oferecidas às grandes empresas. A corrupção
é muito forte e a população, especialmente os pobres, pagam a conta. Há um
sacrifício claro de parte da população. No continente africano, os mais pobres
estão ficando por últimos, como o exemplo da vacinação da COVID-21, que é
também parte desta terceira guerra.
A África, como sabemos da história, foi
dividida para a colonização; hoje estamos em uma nova colonização, que se
mostra com a presença das multinacionais e, muitas vezes, com um desprezo em
relação à África. Eu acredito que a Fratelli Tutti, do Papa Francisco, traz
isso de maneira muito clara. Por isso ele convida a sermos todos irmãos e
irmãs: não é possível que uns fiquem relegados em terceiro plano, enquanto
outros têm fartura; infelizmente, é isso que está ocorrendo.
Jesus de Nazaré buscou o
encontro com os povos não hebreus, fora da Galileia; sempre, para a Igreja, a
missão Ad Gentes foi uma experiência que converte em primeiro lugar a mente e o
coração dos próprios missionários e missionárias. Como pode a missão Ad
Gentes enriquecer a prática e a perspectiva pastoral da Igreja do Brasil? Quais
são os novos caminhos para a Igreja que o senhor intui, a partir de sua
experiência missionária?
Eu costumo dizer que uma igreja particular,
uma diocese, uma paróquia e uma comunidade só é madura quando missionária. Há
líderes religiosos que não enviam ninguém para a missão, alegando haver muitas
necessidades em sua comunidade. Temos que lembrar daquilo que era falado
décadas atrás: “é preciso dar de nossa pobreza”, não podemos esperar ter ou
sobrar, para repartir.
A missão Ad Gentes sempre foi um desafio e é
cada vez mais necessária, atualmente. Quem faz uma experiência missionária,
seja além das fronteiras geográficas ou, como diz o Papa, em situações
especiais, nunca vai voltar a ser a mesma pessoa.
Fazer a experiência missionária é respeitar o
outro, acolher a cultura do outro, do diferente, estar disposto a reaprender,
não transportar valores e culturas para outros lugares, mas ter abertura para
aprender e interagir com outros conhecimentos e aprendizados. Isso converte a
mente e o coração.
O Brasil foi terra missionária, somos frutos
de missão, já recebemos muitos missionários estrangeiros. Hoje, enviamos
missionários para o mundo. Neste momento, por exemplo, em Moçambique, a maior
equipe missionária vem do Brasil (em outra época era da Itália ou do Portugal).
Isto mostra uma Igreja se abrindo para a missão e repartindo da sua pobreza;
isso só enriquece a nossa Igreja.
Eu fiquei em Moçambique por 20 anos e agora
volto para o Brasil; tenho que reaprender muita coisa, mas penso que posso
partilhar a experiência que trago e posso animar muitos a realizarem essa mesma
experiência: ir ao encontro das pessoas e daqueles que mais precisam.
Assim como tenho para aprender, também tenho para partilhar.
Depois de 20 anos de missão em
Moçambique, o que lhe dá força para deixá-lo?
A única resposta possível é a força de Deus,
porque não é fácil. Fui para África porque Deus me chamou, e também por muito
empenho meu. Agora, deixar é um grande desafio. Porém, a proximidade com o Papa
Francisco ajudou a tranquilizar-me: o Papa Francisco tem gestos muito
grandiosos, tanto em Cabo Delgado quanto para o mundo.
Entrevista realizada pelo padre Dário Bossi, missionário comboniano, e Patrícia Teixeira Santos, professora da Universidade Federal de São Paulo. Transcrição: professora Tamires Sodré de Paula
Nenhum comentário:
Postar um comentário