O
Secretário da Congregação para a Doutrina da Fé: este guia indica um caminho e
ajuda os bispos e superiores. Deve-se buscar o caminho da verdade e da justiça,
mas “sem uma formação adequada” e uma “prevenção decisiva”, a ferida dos abuso
não será curada
ANDREA
TORNIELLI
Um manual disponível aos bispos e superiores religiosos para orientá-los no tratamento de casos de abuso dos quais são informados. Assim, o Secretário da Congregação para a Doutrina da Fé, Arcebispo Giacomo Morandi, define nesta entrevista concedida à mídia vaticana o vade-mécum publicado esta quinta-feira (16/07).
Quem preparou este
documento e por que precisou de tanto tempo depois que foi preanunciado em
fevereiro de 2019?
Foi
predisposto pela Congregação graças sobretudo à contribuição do Setor
disciplinar que nos últimos anos adquiriu uma experiência particular sobre os
casos em questão. O tempo aparentemente longo para sua redação deve-se ao
trabalho de defrontação não apenas dentro da Congregação, mas também fora dela,
com especialistas na área, outros Dicastérios e, em particular, com a
Secretaria de Estado.
Qual é a finalidade
deste Vade-mécum e a quem se destina?
Gosto de
chamá-lo, como faz o Prefeito de nossa Congregação, de “manual”. Portanto, não
um texto normativo, mas um instrumento à disposição dos bispos, dos superiores
religiosos, dos tribunais eclesiásticos, dos profissionais do direito e também
dos responsáveis pelos centros de escuta criados pelas conferências episcopais.
Na complexidade das normas e práticas, este guia gostaria de indicar um caminho
e ajudar a não se perder.
Este documento contém
novas indicações em relação às já existentes?
Não.
Nenhuma nova norma é promulgada. A verdadeira novidade, entretanto, é que pela
primeira vez o procedimento é descrito de modo organizado, desde a primeira
notícia de um possível crime até a conclusão definitiva do caso, unindo as
normas existentes e a prática da Congregação. As normas são conhecidas,
enquanto a prática da Congregação, isto é, o modo prático de aplicar as normas,
é conhecido apenas por aqueles que já lidaram com estes casos.
O Vade-mécum é um
documento encerrado e definido ou deverá ser atualizado?
Precisamente
por ser um instrumento, um manual, ele se presta a contínuas atualizações. Elas
se devem tanto a possíveis mudanças futuras na normativa penal, quanto a
esclarecimentos e solicitações que podem vir a nível local dos Ordinários e
agentes do direito. Neste sentido, a versão que sai hoje é chamada “1.0”,
suscetível a atualizações. E qualquer ajuda para melhorá-la é um serviço
bem-vindo à justiça.
Quais são os casos de
competência de sua Congregação?
Em geral,
os crimes reservados à nossa Congregação são todos aqueles contra a fé e
somente os mais graves (na língua comum hoje habitual falamos de delicta
graviora) contra a moral e a administração dos sacramentos. O Vade-mécum,
todavia, refere-se apenas a um desses crimes, que o artigo 6 do motu proprio
Sacramentorum Sanctitatis Tutela atribui ao clérigo quando
realiza ações com menores contra o sexto mandamento do Decálogo. Trata-se dos
casos que a nível dos meios de comunicação mais se tornam notícia, também por
causa de sua gravidade.
Quando, para a
Igreja, se trata de abuso contra “menores”? Como mudou o limite de idade?
Na esfera
criminal, o menor é a pessoa que ainda não atingiu a idade de 18 anos. Outras
distinções de idade, abaixo dos 18 anos, não são relevantes neste sentido. O
Código latino no cân. 1395 § 2 ainda fala de 16 anos de idade, mas o motu
proprio Sacramentorum Sanctitatis Tutela de João Paulo II em 2001
elevou a idade para 18 anos. Os casos de “abuso” (como disse, um “crime contra
o sexto mandamento do Decálogo com menores”) são muitas vezes fáceis de serem
delineados, por exemplo, relações sexuais como tais ou outros contatos físicos
que não são propriamente “relações”, mas que têm uma clara intenção sexual, e
outras vezes os casos são menos fáceis de serem delineados, com nuances que
devem ser avaliadas para ver se se tratam de delicta graviora no
sentido jurídico de acordo com a lei em vigor na época.
É impressionante a
mudança de atitude em relação às denúncias anônimas, que no passado eram
simplesmente ignoradas. O que mudou e por que uma denúncia anônima deve, em
todo caso, ser levada em conta?
A questão
é delicada. Ficou claro que uma atitude peremptória num sentido ou noutro não é
boa para a busca da verdade e da justiça. Como pode ser descartada uma denúncia
que, mesmo anônima, contenha provas claras (por exemplo, fotos, filmes,
mensagens, áudio...) ou pelo menos pistas concretas e plausíveis sobre a
prática de um crime? Ignorá-la só porque não está assinada seria injusto. Por
outro lado: como aceitar como válidas todas as assinalações, mesmo as genéricas
e sem remetente? Neste caso, seria inapropriado proceder. É necessário,
portanto, fazer um cuidadoso discernimento. Em geral, não se dá crédito a
denúncias anônimas, mas não se abre mão a priori de sua avaliação inicial para
ver se existem elementos objetivos e evidentes determinantes, o que em nossa linguagem
chamamos de fumus
delicti.
Quanta influência
tiveram os casos marcantes dos últimos anos no desenvolvimento deste documento
e de outros textos recentes sobre o assunto?
Os casos
marcantes são tratados da mesma forma que os casos menos conhecidos, sempre
segundo as normas do direito. Diante de nós não há “personagens”, mas pessoas:
acusados, presumíveis vítimas, possíveis testemunhas... em geral há sempre um
quadro de sofrimento particular. Certamente, a atenção da mídia a essas
questões cresceu muito nos últimos anos, e isto é mais um estímulo para que a
Congregação busque fazer justiça de uma forma cada vez mais correta e eficaz.
Também por esta razão, o Vade-mécum será de ajuda.
Os Bispos e
Superiores religiosos têm a obrigação de denunciar as notícias de supostos
abusos cometidos por clérigos também às autoridades civis?
Sobre este
ponto, as Conferências Episcopais nacionais prepararam diretrizes que levam em
conta as regulamentações locais. Não é possível dar uma resposta inequívoca. Em
alguns países a lei já prevê esta obrigação, em outros não. De fato, o motu proprio Vos
estis lux mundi do Papa Francisco, promulgado no ano
passado, expressa nestes termos que a Igreja age em casos deste tipo “sem
prejuízo dos direitos e obrigações estabelecidos em todos os lugares pela
legislação dos Estados, particularmente aqueles relativos a possíveis
obrigações de informação às autoridades civis competentes”. (Art. 19). Por
outro lado, o artigo 17 do Vade-mécum também declara: “Mesmo na ausência de uma
obrigação legal explícita, a autoridade eclesiástica deve informar as
autoridades civis competentes sempre que considerar isso indispensável para
proteger a pessoa ofendida ou outros menores contra o perigo de novos atos
criminosos”.
O que é o “processo
penal extrajudicial”? Quando e por que se procede por este caminho?
É um
procedimento previsto pelos dois Códigos canônicos em vigor. Trata-se de um
caminho mais rápido. Na conclusão do processo penal extrajudicial, o Ordinário
(ou um de seus delegados), assistido por dois assessores, chega a uma decisão
sobre se o acusado é ou não culpado e (se culpado com certeza moral) sobre a
pena proporcional a ser imposta. Há prós e contras neste procedimento, também
chamado “administrativo”. O procedimento continua nesta forma extrajudicial
quando, por exemplo: os fatos são claros; a atividade delituosa relatada já é
confirmada pelo acusado; o Ordinário pede que isto seja feito por razões bem
fundamentadas; a Congregação avalia que é apropriado com base nas
circunstâncias particulares (pessoal qualificado, geografia, pontualidade,
etc.). Naturalmente, o direito de defesa do acusado deve ser sempre
absolutamente garantido. Também por esta razão o processo extrajudicial no
direito latino prevê até três graus possíveis de recurso, a fim de garantir o máximo
possível a objetividade do julgamento.
Estamos falando de
crimes que habitualmente são cometidos sem a presença de testemunhas. Como é
possível verificar a validade das acusações para garantir que os culpados sejam
punidos e não mais possam provocar danos?
São
adotados aqueles instrumentos processuais comumente usados para verificar a
confiabilidade das provas. Muitos crimes, não apenas aqueles em questão, são
cometidos sem testemunhas. Mas isso não significa que não se possa chegar a uma
certeza. Existem instrumentos processuais que permitem isso: a confiabilidade
das pessoas envolvidas, a consistência dos fatos declarados, o eventual
cometimento em série dos crimes, a presença de documentos contra eles, etc.
Deve-se dizer que em várias ocasiões o próprio acusado, ciente em consciência
do mal feito, o admite no tribunal.
E como se pode evitar
que uma pessoa seja injustamente acusada e condenada?
Quando o
fato não é suficientemente comprovado, aplica-se o princípio que em dubio
pro reo. É um princípio que está na base da nossa cultura jurídica. Nestes
casos, em vez de declarar a inocência, declara-se a não culpabilidade.
Por que um clérigo,
quando é acusado de ter cometido abusos, pode imediatamente pedir a dispensa do
estado clerical?
É verdade:
onde o clérigo reconhece o crime e sua inaptidão para continuar o ministério,
ele pode pedir para ser dispensado. Assim, ele permanece sacerdote (o
sacramento não se pode revogar ou perder), mas não mais um clérigo: ele deixa o
estado clerical não por demissão, mas com um seu pedido consciente dirigido ao
Santo Padre. São caminhos diferentes que alcançam o mesmo resultado no que diz
respeito à condição jurídica da pessoa: um ex-clérigo que nunca mais poderá se
apresentar como ministro da Igreja.
Uma última pergunta:
o senhor pode nos oferecer alguns dados sobre a dimensão do fenômeno? As novas
normas trazem à luz somente casos do passado ou a chaga dos abusos contra
menores ainda está presente dentro da Igreja?
O fenômeno
está presente em todos os continentes, e ainda se assiste o surgimento de
denúncias de fatos antigos, às vezes até de muitos anos. Certamente, alguns
crimes também são recentes. Mas quando esta fase de “emersão” do passado chegar
ao fim, estou convencido (e todos nós esperamos que sim) de que o fenômeno que
vemos hoje pode estagnar-se. Deve-se dizer, entretanto, que o caminho da
verdade e da justiça é um dos caminhos de resposta da Igreja. Necessário sim,
mas não suficiente. Sem uma formação adequada, um discernimento cuidadoso, uma
prevenção serena, mas decisiva, ele sozinho não poderá curar esta ferida à qual
hoje assistimos.
Fonte: Vatican News
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