Em
vista do Dia Mundial das Comunicações Sociais, em 24 de maio, o diretor do
L'Osservatore Romano, Andrea Monda, entrevista o escritor Daniel Mendelsohn,
que comenta a mensagem do Papa para a ocasião.
ANDREA MONDA
A palavra é uma ponte. Cada história
que é contada cria ligação, comunhão. Este foi o aspecto da Mensagem do Papa
para o Dia Mundial das Comunicações Sociais que mais impressionou o escritor
Daniel Mendelsohn, que encontramos na sua casa de campo: «Tal como os
personagens do Decameron, o qual fala de pessoas que procuram viver no campo e
assim sobreviver a uma grande catástrofe, compartilhando histórias. Pois bem,
como sabemos, não se trata de histórias propriamente “religiosas”, ao
contrário, muito profanas, mas o que Boccaccio quer dizer é que através da
narração podemos reduzir a distância que nos separa e acho que hoje isto é
necessário como nunca. Boccaccio intui esta verdade, precisamente como o Papa».
Pela mensagem do Papa, o romancista e
ensaísta de Long Island sente-se posto em causa como escritor. «Na minha
opinião a mensagem do Papa, que sublinha a importância da partilha de histórias
como meio de ligação humana, parece-me muito necessária especialmente hoje, na
crise em que o mundo inteiro se encontra. E é uma mensagem muito interessante e
diria comovente para mim, como escritor, pois é obviamente o que nós,
escritores, procuramos fazer sempre.
Com efeito, é para isto que serve a
literatura: para ligar todos os diferentes tipos de pessoas, de credos e de
backgrounds através de narrativas humanas. Reflito muito sobre isto neste
momento de terrível pandemia. Isto é válido para o classicismo, mas é assim
também no Evangelho, cujos textos originais foram escritos em grego: os
Evangelistas compreenderam que a narração, as boas histórias, são a melhor
forma de comunicar uma mensagem importante; pensemos no uso das parábolas.
Tanto no mundo profano como no sagrado, os maiores pensadores compreenderam que
a narração humana é a parte mais essencial de quem somos. Somos “criaturas de
narrativa” e é isto que nos torna humanos mais do que qualquer outra coisa, a
narração da nossa experiência, quer ela seja uma experiência teológica, quer
profana ou mundana, independentemente da forma como a tivermos que narrar.
Na minha opinião, há algo de irónico
sobre a constatação de que esta mensagem chega num momento em que as pessoas
têm de ser separadas à força, uma vez que a mensagem revela a natureza da
narração de ser ponte, ou seja, capaz de unir as pessoas. Esta possibilidade de
uma ponte narrativa é tudo o que nos resta hoje. Não podemos estar fisicamente
juntos, não podemos tocar-nos, abraçar-nos, não podemos ver os nossos amigos: o
que temos são histórias. Sim, julgo que a mensagem do Papa Francisco chegou na
hora certa».
O Papa insiste que as histórias a narrar
sejam boas, isto é, bonitas e verdadeiras, o que pensa sobre isto?
Este é um ponto muito importante. Porém, tudo
depende do que queremos dizer quando afirmamos: “uma boa história”. Duas
respostas são possíveis. Antes de mais nada, há uma história que nos faz sentir
bem, felizes, ligados ao mundo e à vida de forma humana. Mas há outro tipo de
boa história, aquela que capta e partilha a verdade com as pessoas, ainda que
seja uma verdade difícil. A meu ver, existe sempre uma responsabilidade maior pela
verdade. Neste nosso tempo há muitas histórias por aí; por isso, é ainda mais
fundamental a responsabilidade do escritor (ou do jornalista, ou do
sacerdote...) de narrar o que é verdade. Especialmente num momento de pânico,
de ansiedade, é mais importante comunicar a verdade às pessoas, mesmo que a
verdade seja difícil. Uma história verdadeira é também uma história bonita. Por
isso, acho que o Papa tem razão: é importante compartilhar uma boa história,
para poder ajudar as pessoas; não só com uma história feliz, mas sobretudo com
uma história verdadeira, e é sobre isto que se baseia a responsabilidade de ser
verdadeiro.
Foi este sentido de responsabilidade
que o impeliu a escrever o seu livro sobre o Holocausto, “The Lost”?
Sim, um escritor nunca deve falsificar
a realidade, mas encará-la, tal como ela é. Algo que aprendi precisamente
escrevendo a narração da minha história familiar sobre o Holocausto: até nas
histórias mais terríveis existem momentos de graça e eles devem ser procurados
e narrados, pois é disto que as pessoas precisam. Momentos de graça: quero
dizer, por exemplo, quando alguém decide salvar outra pessoa, quando alguém se
agarra à própria humanidade num tempo desumano... Penso que é dever
do escritor mostrar o quadro completo, e o quadro completo pode incluir um
momento de graça.
Portanto o senhor concorda que, como
diz o Papa, a narração de histórias boas, isto é, bonitas e verdadeiras,
salva os homens do domínio da tagarelice e das fake news?
Sem dúvida, era o que eu dizia: no século XXI
estamos circundados, sufocados pelos mexericos e hoje mais do que nunca, no
momento da crise, é necessário lutar contra o ruído, a tagarelice, as notícias
falsas. É a Fama, o monstro de que fala o meu poeta preferido, Virgílio, no
quarto canto da Eneida, ou seja, o boato, o terrível poder dos mexericos, das
notícias falsas. Como se combate este monstro? Com histórias verdadeiras, com a
verdade: a verdade científica, a verdade jornalística, a verdade médica, mas
também a verdade espiritual, a verdade emocional... é disto que precisamos. É
como se a atmosfera estivesse cheia de veneno e a verdade fosse o antídoto. E a
difusão da verdade passa através de uma história.
Segundo o Papa, a narração de
histórias permite conhecer melhor também a própria identidade...
É verdade. Todos os escritores devem
entender que através do processo de criação e de narração da história se
desenvolve um sentido mais elevado da verdade. A redação da história é o
veículo para uma maior compreensão, tanto por parte do escritor como do leitor.
Portanto, a história é um instrumento cognitivo, que permite a compreensão.
No entanto, a palavra da poesia
parece ambígua, incerta, em comparação com a palavra da ciência, tão clara e
unívoca.
Sou filho de um cientista e tenho
grande respeito pela ciência, mas julgo que podemos dizer que a ciência pode
afirmar uma verdade sobre o mundo, sobre o cosmo, enquanto a literatura pode
afirmar uma verdade sobre o espírito humano que a ciência nunca poderá iluminar
definitivamente. Ambas procuram dizer uma verdade, mas trata-se de
verdades diferentes, portanto ambas são necessárias: a ciência fala sobre o
modo como o mundo é feito; a literatura, ao contrário, diz algo inefável. Eis o
objetivo da literatura: procurar explicar o que nada mais o pode fazer. Todos
os que narram, escrevem, procuram escrever a verdade: cientistas, poetas,
romancistas, jornalistas... quando procuram dizer a verdade, fazem parte do
mesmo projeto, mas trata-se de um projeto enorme que precisa de muitos tipos de
histórias diferentes para o narrar. Precisamos tanto da literatura como da
ciência.
Nestas páginas Renzo Piano observou
que todos os homens, até os cientistas, seu caminho de investigação, devem
parar diante de um limiar, de um mistério.
Concordo: no final, existe um ponto
para além do qual há uma espécie de mistério. Podemos chamar-lhe o inefável, o
misterioso, o divino, mas acho que todos aqueles que são honestos percebem que
afinal existe “algo” misterioso, que todos nós humanos temos em comum, mas que
é muito difícil de descrever. Podemos defini-lo também “transcendente”, algo
que se reconhece, mas que é muito difícil de escrever. Este “transcendente” é
também o ponto para onde vamos, é a meta do caminho do homem, um horizonte que
conhecemos, mas não podemos dizer bem o que é, e por isso continuamos a avançar
incessantemente.
A poesia ocidental começa com as
palavras de Homero, que pede à musa para ser inspirado. A arte é “techne”, uma
habilidade sob o controle do artista, ou é um dom recebido?
O fato de que tudo começa com a invocação da musa é
um reconhecimento de que com a arte se vai além do conhecimento humano, além da
mera capacidade humana de fazer poesia. E, portanto, é necessária a ajuda do
divino. É um reconhecimento claro do limite do poder humano: no fundo, o que
Homero diz é que ele não pode fazer poesia sem a ajuda do divino. Todos os
grandes artistas reconhecem que num certo ponto intervém o transcendente,
quando há necessidade de uma espécie de talento sobre-humano para fazer uma
grande arte. É o início comum da Ilíada e da Odisseia: temos necessidade dos
deuses para narrar a nossa história. Nos nossos dias, nestes tempos de
secularização, poder-se-ia falar, de forma mais laica, de “inspiração”,
“talento”. Mas acho que todas estas palavras são apenas um reconhecimento de
que é necessária alguma qualidade sobre-humana. Os gregos foram mais honestos:
diziam “os deuses”.
Fascinante e poético
Nascido
a 16 de abril de 1960, Daniel Mendelsohn é escritor, crítico, tradutor e
estudioso de literatura clássica. Completou os estudos clássicos na
Universidade da Virgínia e depois em Princeton. Escreve sobre literatura,
cinema e teatro na “New York Times Book Review”, “New Yorker” e “New York
Review of Books”, e ensina Literatura no Bard College. É o autor de The
Elusive Embrace: Desire and the Riddle of Identity (1999) e de um
estudo académico sobre a tragédia grega, Gender and the City in
Euripides' Political Plays (2002). Em 2006 publicou The
Lost que se tornou um best seller. As suas publicações incluem também
ensaios, reflexões filosóficas e religiosas, diários e uma edição crítica das
obras de Kavafis. Em 2018, Einaudi publicou a poética e convincente Un’Odissea.
Un padre, un figlio e un’epopea.
Fonte: Vatican News
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