“Renovo
o meu apelo a todas as partes interessadas para que evitem um agravamento do
conflito e mantenham acesa a chama do diálogo e do autocontrole”: este foi um
dos trechos mais incisivos do discurso do Papa Francisco ao corpo diplomático
acreditado junto à Santa Sé.
Bianca Fraccalvieri – Cidade do
Vaticano
A crise entre Estados Unidos e Irã,
as queimadas na Austrália, o impasse na Venezuela, a proteção do meio ambiente:
todos os temas candentes da atualidade estiveram presentes num dos discursos
mais aguardados do ano do Papa Francisco, isto é, ao corpo diplomático.
Na Sala Regia, estavam presentes os
embaixadores dos 183 países com os quais a Santa Sé mantém relações
diplomáticas, entre os quais o Brasil.
A
longa e minuciosa análise do Pontífice partiu da palavra esperança:
“Infelizmente, o novo ano aparece-nos constelado não tanto de sinais
encorajadores, como sobretudo duma intensificação de tensões e violências. É
precisamente à luz destas circunstâncias que não podemos cessar de esperar. E esperar
exige coragem”.
América
A partir daí, o Papa lembrou cada uma de suas viagens
apostólicas em 2019 para passar em resenha todos os continentes, começando pela
América. No Panamá, em janeiro, ele visitou o país por ocasião da Jornada
Mundial da Juventude.
A primeira lembrança de Francisco, porém, foi a de jovens
abusados por membros do clero. “Trata-se de crimes que ofendem a Deus, causam
danos físicos, psicológicos e espirituais às vítimas e lesam a vida de
comunidades inteiras.” O Papa reiterou o compromisso da Igreja em debelar esta
chaga e os esforços que vem fazendo, como, por exemplo, o encontro realizado em
fevereiro com os presidentes de todas as Conferências Episcopais. E olhando
para o futuro, citou o evento marcado para o próximo mês de maio, para um
novo pacto educativo global.
A esse ponto, o Papa recordou o Sínodo Amazônico, realizado no
Vaticano em outubro passado. “O Sínodo foi um evento essencialmente eclesial”,
afirmou, mas “não podia eximir-se de abordar outras temáticas – a começar pela
ecologia integral – que dizem respeito à própria vida daquela região tão vasta
e importante para todo o mundo, uma vez que a floresta amazónica é um 'coração
biológico' para a terra cada vez mais ameaçada".
Ainda no continente americano, Francisco mencionou
explicitamente a Venezuela e criticou as polarizações ideológicas, fazendo a
seguinte análise:
“Em
geral, os conflitos da região americana, embora possuindo raízes diferentes,
são irmanados pelas profundas desigualdades, as injustiças e uma endêmica
corrupção, bem como pelas várias formas de pobreza que ofendem a dignidade das
pessoas. Por isso, os líderes políticos esforcem-se por restabelecer,
urgentemente, uma cultura do diálogo em prol do bem comum e por fortalecer as
instituições democráticas e promover o respeito pelo estado de direito, a fim
de prevenir deslizes antidemocráticos, populistas e extremistas.”
Oriente
Médio
Ao falar da viagem ao Marrocos e aos Emirados Árabes Unidos,
ocasião em que assinou o Documento
sobre a Fraternidade Humana com o Grande Imã de Al-Azhar, Ahmad
al-Tayyeb, o Pontífice enquadrou uma das situações mais explosivas do planeta:
o Oriente Médio e a península arábica. Síria, Iêmen, Líbia, Israel e Palestina
foram citados, mas a atenção de Francisco se concentrou sobre o que aconteceu
recentemente no Iraque:
“Particularmente
preocupantes são os sinais que chegam de toda a região, após a recrudescência
da tensão entre o Irã e os Estados Unidos que se arrisca, antes de tudo, a
colocar a dura prova o lento processo de reconstrução do Iraque, bem como a
criar as bases dum conflito de mais vasta escala que todos quereríamos poder
esconjurar. Por isso, renovo o meu apelo a todas as partes interessadas para
que evitem um agravamento do conflito e mantenham «acesa a chama do diálogo e
do autocontrole», no pleno respeito da legalidade internacional.”
Europa
Depois, foi a vez da Europa e as viagens à Bulgária,
Macedônia do Norte e Romênia. O Papa não esqueceu dos migrantes e
refugiados, constatando que o Mediterrâneo permanece um grande cemitério. Falou
das tensões no Cáucaso, nos Bálcãs e na Ucrânia e citou uma série de datas
comemorativas: os 45 anos da Organização para a Segurança e a Cooperação na
Europa (OSCE), os 70 anos do Conselho Europeu, os 30 anos da queda do Muro de
Berlim:
“O Muro de Berlim permanece emblemático duma cultura da divisão
que afasta as pessoas umas das outras e abre caminho ao extremismo e à
violência. Vemo-lo sempre mais na linguagem de ódio amplamente usada na
internet e nos meios de comunicação social. Às barreiras do ódio, preferimos as
pontes da reconciliação e da solidariedade.”
Outro fato que mereceu uma menção por parte de Francisco foi o
incêndio que destruiu a Catedral de Notre Dame, em Paris, que “mostrou como é
frágil e fácil destruir até o que parece sólido” e trouxe à tona o tema dos
valores históricos e culturais da Europa. “Num contexto onde faltam valores de
referência, torna-se mais fácil encontrar elementos de divisão que de coesão.”
África
A África ganhou destaque ao fazer memória de suas viagens a
Moçambique, Madagascar e Maurício, ressaltando os sinais de paz e de
reconciliação. Todavia, o Papa manifestou o seu pesar pela violência e atos de
terrorismo em Burkina Faso, Camarões, Mali, Níger, Nigéria, República
Centro-Africana e Sudão, inclusive com cristãos pagando com a vida a sua
fidelidade ao Evangelho. E mais uma vez manifestou publicamente seu desejo de
visitar o Sudão do Sul este ano.
Por fim, a viagem à Tailândia e Japão. A atenção se concentrou
sobre o testemunho dos hibakusha, isto
é, os sobreviventes aos bombardeios atômicos em Hiroshima e Nagasaki. Francisco
voltou a repetir que o uso das armas atômicas é imoral e que é possível e
necessário livrar-se desses armamentos.
Austrália
A última nação citada pelo Pontífice foi a Austrália, que vem
sofrendo com os incêndios nos últimos meses.
“Ao
povo australiano, especialmente às vítimas e a quantos vivem nas regiões
atingidas pelos fogos, desejo certificá-los da minha proximidade e oração.”
Além de se debruçar sobre situações inerentes aos países, o Papa
recordou ainda os 75 anos da Organização das Nações Unidas, cujo serviço até
aqui foi um “sucesso”, especialmente para evitar outra guerra mundial, mas que
hoje necessita de uma reforma geral para torná-la ainda mais eficaz.
Mulheres
Outra data que inspirou o Pontífice foram os 500 anos da morte
do artista italiano Rafael Sanzio, que tinha como um de seus temas preferidos
retratar Nossa Senhora. E lembrou que a Igreja celebra em 2020 os 70 anos da
proclamação dogmática da Assunção da Virgem Maria ao Céu.
“Com o olhar posto em Maria, desejo dirigir uma saudação
particular a todas as mulheres, 25 anos depois da IV Conferência Mundial das
Nações Unidas sobre a Mulher, realizada em Pequim no ano de 1995, com votos de
que em todo o mundo se reconheça cada vez mais o precioso papel das mulheres na
sociedade e cessem todas as formas de injustiça, desigualdade e violência contra
elas.”
Francisco recordou que “toda a violência infligida à mulher é
profanação de Deus”, “um crime que destrói a harmonia, a poesia e a beleza que
Deus quis dar ao mundo”.
Diplomacia
A justiça e a paz, finalizou o Pontífice, serão totalmente
restabelecidas no final do caminhar terreno. Até lá, a diplomacia é a tentativa
humana – “imperfeita, mas sempre preciosa” – para se alcançar esses frutos.
“Com este compromisso, renovo a todos vocês, queridos
Embaixadores e ilustres convidados aqui reunidos, e aos seus países, os
meus votos cordiais de um novo ano cheio de esperança e repleto de bênçãos.”
Fonte:
Vatican News
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