"Precisamos
reconquistar nossos irmãos e irmãs nas congregações e nas comunidades,
reconquistar sua confiança e conseguir novamente sua disponibilidade para
colaborarem conosco, para estabelecermos juntos o Reino de Deus", disse o
Papa ao final de sua alocução.
Cidade do Vaticano
No final do terceiro dia do Encontro
sobre a Proteção dos Menores na Igreja, o Papa Francisco presidiu na Sala Regia
do Palácio Apostólico, uma Liturgia Penitencial na presença dos presidentes das
Conferências Episcopais de todo o mundo. Eis suas palavras:
“Irmãos e irmãs,
todos conhecemos a Parábola do Filho
Pródigo. Nós a contamos frequentemente e frequentemente fizemos homilias sobre
ela. Nas nossas congregações e nas nossas comunidades a consideramos nada
mais que óbvia: declama-se aos pecadores para induzi-los ao arrependimento.
Talvez tenha se tornado um hábito tão comum, que esquecemos algo importante.
Esquecemos rapidamente de aplicar essa Escritura para nós mesmos, de nos ver
pelo que somos, ou seja filhos pródigos.
Precisamente como o filho pródigo do
Evangelho, pedimos nossa parte da herança, ganhamo-la e agora a estamos
esbanjando com muito desempenho. Essa crise dos abusos é uma expressão disso. O
Senhor nos confiou a administração dos bens da salvação, Ele confia e acredita
que nós vamos cumprir Sua missão, que vamos proclamar a Boa Nova e vamos
construir a estabelecer o Reino de Deus.
Muito pelo contrário, o que fazemos?
Fazemos jus ao que nos foi confiado? Nós não poderíamos responder a essa
pergunta com um "sim" honesto, não se tem dúvida disso.
Frequentemente ficamos por demais
parados, olhamos para outro lado, evitamos conflitos - estávamos demasiadamente
confortáveis para nos confrontarmos com o lado escuro da Igreja. Traímos
portanto a confiança em nós depostiada, de modo especial em relação ao
abuso no âmbito da responsabilidade da Igreja, que é substancialmente nossa
responsabilidade. Não garantimos às pessoas a proteção que elas têm direito de
ter, destruímos a esperança e as pessoas foram brutalmente violadas no corpo e
no espírito.
O filho pródigo do Evangelho perde
tudo: não apenas sua herança, mas também seu estado social, sua boa posição,
sua reputação. Não seria de se admirar se coubesse a nós um destino semelhante,
se as pessoas falam mal de nós, se há desconfiança em nós, se alguns ameaçam
retirar seu apoio moral. Não devemos reclamar por causa disso: mais do que
isso, precisaríamos nos perguntar o que deveríamos fazer diferente. Ninguém
pode se furtar, ninguém pode dizer: mas eu pessoalmente não fiz nada de mal.
Nós somos irmãos (no episcopado) e não somos responsáveis apenas por nós
mesmos, mas também por cada membro da fraternidade e pela própria fraternidade.
O que precisamos fazer de modo
diferente e por onde precisamos começar? Olhemos mais uma vez o filho pródigo
do Evangelho. Para ele a situação começa a melhorar ao resolver ser muito
humilde, desempenhar cargos muito simples e não pretender nenhum privilégio.
Sua situação muda quando ele se reconhece e admite ter cometido um erro, ele
confessa isso ao Pai, fala com ele abertamente e está pronto para sofrer as
consequências disso. Deste modo, o Pai experimenta a grande alegria pela volta
do seu filho pródigo e ajuda a fazer com que os irmãos se ajudem
mutuamente.
Seremos capazes de fazer isso? Desejaremos
fazer isso? O atual encontro vai desvendar isso, deve desvendá-lo, se quisermos
demonstrar que somos dignos filhos do Senhor, nosso Pai celeste. Como ouvimos e
discutimos hoje e nos dois dias precedentes, isso implica assumirmos
responsabilidades, mostrarmos a accountability (a obrigação de
se dar conta daquilo que se faz) e instituirmos a transparência.
O caminho à nossa frente para
implementarmos de verdade tudo isso de modo sustentável e apropriado é longo.
Conseguimos progressos variados caminhando com velocidades diferentes. O
encontro atual foi somente um passo entre muitos. Não acreditemos que apenas
porque começamos a trocar algo entre nós, todas as dificuldades tenham sido
eliminadas. E como para o filho do Evangelho que volta para casa, nem tudo está
resolvido – quanto mais não seja, ele vai precisar reconquistar seu irmão. Nós
precisamos fazer a mesma coisa: precisamos reconquistar nossos irmãos e irmãs
nas congregações e nas comunidades, reconquistar sua confiança e conseguir
novamente sua disponibilidade para colaborarem conosco, para estabelecermos
juntos o Reino de Deus".
Testemunho
Durante a liturgia penitencial,
também um testemunho:
O abuso, de qualquer tipo, é a maior
humilhação que um indivíduo possa sofrer. É preciso confrontar com a
consciência de que não se pode defender contra a força superior do agressor.
Você não pode escapar do que acontece, mas você tem que suportar, não importa o
quão ruim seja. Quando se vive o abuso, gostaríamos de acabar com tudo. Mas
isso não é possível.
Gostaria de escapar, então acontece
que você não é mais si mesmo. Gostaria de fugir tentando escapar de si mesmo.
Assim, com o tempo, a pessoa fica completamente sozinha. Você está sozinho,
porque se retirou para outro lugar e não pode ou não quer voltar para si mesmo.
Quanto mais acontece, menos você retorna a si mesmo. Você é outra pessoa e
sempre permanecerá assim. O que você carrega dentro é como um fantasma, que os
outros não são capazes de ver. Nunca verão você e não conhecerão você completamente.
O que mais magoa é a certeza de que ninguém vai entender você. E isso fica com
você pelo resto da vida.
As tentativas de retornar ao
verdadeiro eu e de participar do mundo "precedente", como antes do
abuso, são tão dolorosas quanto o próprio abuso. Você sempre vive em dois
mundos ao mesmo tempo. Eu gostaria que os agressores pudessem entender que
criam essa divisão nas vítimas. Pelo resto de nossas vidas.
Quanto maior o seu desejo e as suas
tentativas de reconciliar esses dois mundos, mais dolorosa é a certeza de que
isso não é possível. Não há sonho sem lembranças do que aconteceu, nenhum dia
sem recordações (flashbacks).
Agora consigo administrar melhor essa
situação, aprendendo a viver com essas duas vidas. Eu tento me concentrar sobre
o meu direito divino de estar vivo. Eu posso e devo estar aqui. Isso me dá
coragem. Acabou agora. Eu posso continuar. Eu tenho que continuar. Se eu
desistisse agora ou parasse, eu deixaria que essa injustiça interferisse na
minha vida. Eu posso evitar que isso aconteça aprendendo a controlá-lo e
aprendendo a falar sobre isso.
Exame de consciência
A Parábola do Pai misericordioso nos
mostra que Deus oferece o perdão e uma esperança futura. O Filho que deixou o
Pai, porém, não pode permanecer longe, mas deve reconhecer sua culpa,
arrepender-se e retornar ao Pai.
Durante três dias, conversamos entre
nós e ouvimos as vozes das vítimas sobreviventes sobre os crimes que as
crianças e os jovens sofreram na nossa Igreja. Perguntamos um ao outro: como
podemos agir com responsabilidade e quais são as medidas que precisamos tomar
agora? Mas para enfrentar o futuro com nova coragem, devemos dizer, como o
filho pródigo: "Pai, pequei". Devemos avaliar onde há necessidade de
ações concretas para as Igrejas locais, para os membros de nossas Conferências
Episcopais, para nós mesmos. E isso exigirá de nossa parte uma visão honesta da
situação em nossos países e de nossas ações.
Que abusos foram cometidos contra
crianças e jovens por clérigos e outros membros da Igreja em meu país? O que eu
sei sobre as pessoas da minha diocese que foram abusadas e violentadas por
padres, diáconos e religiosos? Como a Igreja em meu país respondeu àqueles que
foram submetidos a abusos de poder, consciência e abuso sexual? Que obstáculos
colocamos na frente deles? Nós os ouvimos? Nós procuramos ajudá-los? Procuramos
justiça para eles? Eu mantive minhas responsabilidades?
Na
Igreja do meu país, como nos comportamos com os bispos, sacerdotes, diáconos e
religiosos acusados de abuso sexual? Como tratamos aqueles cujos crimes foram
estabelecidos? E o que eu pessoalmente fiz para evitar essa injustiça e
estabelecer justiça? O que eu deixei de fazer? Que atenção demos em nosso país
às pessoas cuja fé foi abalada e às pessoas que sofreram e foram indiretamente
feridas e afetadas por tais horríveis eventos? Há ajuda para famílias e
parentes de pessoas que foram abusadas? Ajudamos pessoas nas paróquia onde o acusado
e os criminosos estavam trabalhando? Eu me permiti acompanhar os sofrimentos
dessas pessoas? Que medidas adotamos em nosso país para evitar uma nova
injustiça? Trabalhamos para sermos coerentes em nossas ações? Fomos coerentes?
Na minha diocese, fiz todo o possível para fazer justiça e aliviar as feridas
das vítimas e das pessoas que sofrem por causa delas? Eu negligenciei o que é
importante?
Fonte: Vatican News
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