Confira
o discurso integral do Papa Francisco no Encontro inter-religioso realizado no
Founder’s Memorial, em Abu Dhabi, Emirados Árabes Unidos, nesta segunda-feira
(04/02).
VISITA
DO SANTO PADRE AOS EMIRADOS ÁRABES UNIDOS
Encontro
Inter-religioso
Al Salamò Alaikum! A paz esteja convosco!
De coração agradeço a Sua Alteza o
Xeque Mohammed bin Zayed Al Nahyan e ao Doutor Ahmad Al-Tayyib, Grande Imã de
Al-Azhar, pelas suas palavras. Estou grato ao Conselho dos Anciãos pelo
encontro que acabamos de ter na Mesquita do Xeque Zayed.
Saúdo cordialmente as Autoridades
civis e religiosas e o Corpo Diplomático. Permitam-me também um sincero
obrigado pela calorosa recepção que todos reservaram a mim e à nossa delegação.
Agradeço também a todas as pessoas
que contribuíram para tornar possível esta viagem e que trabalharam com
dedicação, entusiasmo e profissionalismo para este evento: os organizadores, o
pessoal do Protocolo, o da Segurança e todos aqueles que, nos «bastidores», de
várias maneiras deram a sua contribuição. Um agradecimento particular ao Senhor
Mohammed Abdel Salam, ex-conselheiro do Grande Imã.
Daqui, da vossa pátria, dirijo-me a
todos os países desta Península, saudando-os cordialmente com respeito e
amizade.
De ânimo reconhecido ao Senhor,
aproveitei o ensejo do VIII centenário do encontro entre São Francisco de Assis
e o sultão al-Malik al-Kamil para vir aqui como crente sedento de paz, como
irmão que procura a paz com os irmãos. Desejar a paz, promover a paz, ser
instrumentos de paz: para isto, estamos aqui.
Arca de fraternidade
O logotipo desta viagem representa
uma pomba com um ramo de oliveira. É uma imagem que nos traz à memória a
narração do dilúvio primordial, presente em várias tradições religiosas.
Segundo a narração bíblica, para preservar a humanidade da destruição, Deus
pede a Noé para entrar na arca com a sua família. Hoje também nós, em nome de
Deus, para salvaguardar a paz, precisamos de entrar juntos, como uma única
família, numa arca que possa sulcar os mares tempestuosos do mundo: a
arca de fraternidade.
O ponto de partida é reconhecer que
Deus está na origem da única família humana. Criador de tudo e de todos, quer
que vivamos como irmãos e irmãs, morando nesta casa comum da criação que Ele
nos deu. Funda-se aqui, nas raízes da nossa humanidade comum, a fraternidade
como «vocação contida no desígnio criador de Deus».[1] Esta fraternidade
diz-nos que todos temos igual dignidade, pelo que ninguém pode ser dono ou
escravo dos outros.
Não se pode honrar o Criador sem
salvaguardar a sacralidade de cada pessoa e de cada vida humana: cada um é
igualmente precioso aos olhos de Deus. Com efeito, Ele não olha a família
humana com um olhar de preferência que exclui, mas com um olhar de benevolência
que inclui. Por isso, reconhecer os mesmos direitos a todo o ser humano é
glorificar o Nome de Deus na terra. Assim, em nome de Deus Criador, é preciso
condenar, decididamente, qualquer forma de violência, porque seria uma grave
profanação do Nome de Deus utilizá-Lo para justificar o ódio e a violência
contra o irmão. Religiosamente, não há violência que se possa justificar.
Inimigo da fraternidade é o
individualismo
Inimigo da fraternidade é o
individualismo, que se traduz na vontade de eu mesmo e o meu próprio grupo nos
sobrepormos aos outros. Trata-se duma insídia que ameaça todos os aspetos da
vida, mesmo a mais alta e inata prerrogativa do homem que é a abertura ao transcendente
e a religiosidade. A verdadeira religiosidade consiste em amar a Deus de todo o
coração e ao próximo como a si mesmo. Por isso, a conduta religiosa precisa de
ser continuamente purificada duma tentação frequente: considerar os outros como
inimigos e adversários. Cada credo é chamado a superar o desnível entre amigos
e inimigos, assumindo a perspectiva do Céu que abraça os homens sem privilégios
nem discriminações.
Desejo, pois, expressar apreço pelo
compromisso deste país em tolerar e garantir a liberdade de culto,
contrapondo-se ao extremismo e ao ódio. Assim procedendo, ao mesmo tempo que se
promove a liberdade fundamental de professar o próprio credo, exigência
intrínseca na própria realização do homem, vela-se também para que a religião
não seja instrumentalizada e corra o risco de, admitindo violência e
terrorismo, se negar a si mesma.
É certo que, «apesar de os irmãos
estarem ligados por nascimento e possuírem a mesma natureza e a mesma
dignidade, a fraternidade exprime também a multiplicidade e a diferença que
existe entre eles».[2] Expressão disso mesmo é a pluralidade religiosa. Neste
contexto, a atitude correta não é a uniformidade forçada nem o sincretismo
conciliador: o que estamos chamados a fazer como crentes é trabalhar pela igual
dignidade de todos em nome do Misericordioso, que nos criou e em cujo Nome se
deve buscar a composição dos contrastes e a fraternidade na diversidade.
Gostaria, aqui, de reiterar a convicção da Igreja Católica, segundo a qual «não
podemos invocar Deus como Pai comum de todos, se nos recusamos a tratar como
irmãos alguns homens, criados à sua imagem».[3]
No entanto, várias questões se
impõem: Como salvaguardar-nos mutuamente na única família humana? Como
alimentar uma fraternidade que não seja teórica, mas se traduza em autêntica
união? Como fazer prevalecer a inclusão do outro sobre a exclusão em nome da
própria afiliação? Enfim, como podem as religiões ser canais de fraternidade em
vez de barreiras de separação?
A família humana e a coragem da
alteridade
Se acreditamos na existência da
família humana, segue-se daí que a mesma, enquanto tal, deve ser salvaguardada.
Como se verifica em cada família, consegue-se isso, antes de mais nada, através
dum diálogo diário e efetivo. Isto pressupõe a própria identidade, a que não se
deve abdicar para agradar ao outro; mas, ao mesmo tempo, requer a coragem
da alteridade,[4] que supõe o pleno reconhecimento do outro e da sua
liberdade com o consequente compromisso de me gastar para que os seus direitos
fundamentais sejam respeitados sempre, em toda parte e por quem quer que seja.
Com efeito, sem liberdade, já não se é filho da família humana, mas escravo. E.
dentre as liberdades, gostaria de salientar a liberdade religiosa. Esta não se
limita à mera liberdade de culto, mas vê no outro verdadeiramente um irmão, um
filho da minha mesma humanidade, que Deus deixa livre e, por conseguinte,
nenhuma instituição humana pode forçar, nem mesmo em nome d’Ele.
O diálogo e a oração
A coragem da alteridade é a alma
do diálogo, que se baseia na sinceridade de intenções. Com efeito,
o diálogo é comprometido pelo fingimento, que aumenta a distância e a suspeita:
não se pode proclamar a fraternidade e, depois, agir em sentido oposto. Segundo
um escritor moderno, «quem mente a si mesmo e escuta as próprias mentiras,
chega ao ponto de já não ser capaz de distinguir a verdade dentro de si mesmo
nem ao seu redor e, assim, começa a perder a estima por si mesmo e pelos
outros».[5]
Em tudo isto, é indispensável a oração:
esta, ao mesmo tempo que encarna a coragem da alteridade em relação a Deus, na
sinceridade da intenção, purifica o coração de fechar-se em si mesmo. A oração
feita com o coração é um restaurador de fraternidade. Por isso, «quanto ao
futuro do diálogo inter-religioso, a primeira coisa que devemos fazer é rezar.
E rezar uns pelos outros: somos irmãos! Sem o Senhor, nada é possível; com Ele,
tudo se torna possível! Possa a nossa oração – cada um segundo a sua tradição –
aderir plenamente à vontade de Deus, o Qual deseja que todos os homens se
reconheçam irmãos e vivam como tais, formando a grande família humana na
harmonia das diversidades».[6]
Não há alternativa: ou construiremos
juntos o futuro ou não haverá futuro. De modo particular, as religiões não
podem renunciar à tarefa impelente de construir pontes entre os povos e as
culturas. Chegou o tempo de as religiões se gastarem mais ativamente, com
coragem e ousadia e sem fingimento, por ajudar a família humana a amadurecer a
capacidade de reconciliação, a visão de esperança e os itinerários concretos de
paz.
A educação e a justiça
E voltamos, assim, à imagem inicial
da pomba da paz. Também a paz, para levantar voo, precisa de asas que a
sustentem: as asas da educação e da justiça.
A educação – educere,
em latim, significa extrair, tirar fora – é trazer à luz os preciosos recursos
da alma. É consolador verificar como, neste país, não se investe apenas na
extração dos recursos da terra, mas também nos recursos do coração, na educação
dos jovens. É um compromisso que almejo possa continuar e difundir-se por
outros lados. A própria educação tem lugar na relação, na reciprocidade. À
famosa máxima antiga «conhece-te a ti mesmo», devemos juntar «conhece
o irmão»: a sua história, a sua cultura e a sua fé, porque, sem o outro,
não há verdadeiro conhecimento de si mesmo. Como homens e mais ainda como
irmãos, lembremos uns aos outros que nada do que é humano nos pode ficar
alheio.[7] Em ordem ao futuro, é importante formar identidades abertas, capazes
de vencer a tentação de se fechar em si mesmas e empedernir-se.
Investir na cultura favorece a
diminuição do ódio e o aumento da civilidade e prosperidade. Educação e
violência são inversamente proporcionais. As instituições católicas –
apreciadas também neste país e na região – promovem tal educação para a paz e
compreensão mútua para prevenir a violência.
Cercados frequentemente por mensagens
negativas e notícias falsas, os jovens precisam de aprender a não ceder às
seduções do materialismo, do ódio e dos preconceitos, a reagir à injustiça e também
às experiências dolorosas do passado e a defender os direitos dos outros com o
mesmo vigor com que defendem os próprios. Um dia, serão eles a julgar-nos: bem,
se lhes tivermos dado bases sólidas para criar novos encontros de civilidade;
mal, se lhes tivermos deixado apenas miragens e a desoladora perspectiva de
nefastos conflitos de incivilidade.
A justiça é a
segunda asa da paz; com frequência, esta não é comprometida por episódios
individuais, mas é lentamente devorada pelo câncer da injustiça.
Portanto, não se pode crer em Deus
sem procurar viver a justiça com todos, como diz a regra de ouro: «O que
quiserdes que vos façam os homens, fazei-o também a eles, porque isto é a Lei e
os Profetas» (Mt 7, 12).
Paz e justiça são inseparáveis! Diz o
profeta Isaías: «A paz será obra da justiça» (32, 17). A paz morre, quando se
divorcia da justiça, mas a justiça revela-se falsa se não for universal. Uma
justiça circunscrita apenas aos familiares, aos compatriotas, aos crentes da
mesma fé é uma justiça claudicante… uma injustiça disfarçada!
As religiões têm também a tarefa de
lembrar que a ganância do lucro torna néscio o coração e que as leis do mercado
atual, ao exigir tudo e súbito, não ajudam o encontro, o diálogo, a família:
dimensões essenciais da vida que precisam de tempo e paciência. Que as
religiões sejam voz dos últimos – estes não são estatísticas, mas irmãos – e
estejam da parte dos pobres; velem como sentinelas de fraternidade na noite dos
conflitos, sejam apelos diligentes à humanidade para que não feche os olhos
perante as injustiças e nunca se resigne com os dramas sem conta no mundo.
O deserto que floresce
Depois de ter falado da fraternidade como arca
de paz, gostaria agora de me inspirar numa segunda imagem: o deserto,
que nos envolve.
Aqui, com clarividência e sabedoria,
em poucos anos o deserto foi transformado num lugar próspero e hospitaleiro; de
obstáculo impérvio e inacessível que era, o deserto tornou-se lugar de encontro
entre culturas e religiões. Aqui o deserto floresceu, não apenas durante alguns
dias no ano, mas para muitos anos vindouros. Este país, em que se tocam areia e
arranha-céus, continua a ser uma importante encruzilhada entre o Ocidente e o
Oriente, entre o Norte e o Sul do planeta, um lugar de desenvolvimento,
onde espaços outrora inóspitos proporcionam empregos a pessoas de várias
nações.
Mas o desenvolvimento também tem os
seus adversários. E, se o inimigo da fraternidade é o individualismo, como
obstáculo ao desenvolvimento apontaria a indiferença, que acaba por converter as
realidades florescentes em zonas desertas. De facto, um desenvolvimento
puramente utilitarista não gera progresso real e duradouro. Só um
desenvolvimento integral e coeso prepara um futuro digno do homem. A
indiferença impede de ver a comunidade humana para além dos lucros, e ver o
irmão para além do trabalho que faz. Com efeito, a indiferença não olha para o
amanhã; não se importa com o futuro da criação, não cuida da dignidade do
forasteiro nem do futuro das crianças.
Neste contexto, alegro-me com o facto
de se ter realizado precisamente aqui em Abu Dhabi, em novembro passado, o
primeiro Fórum da Aliança inter-religiosa por Comunidades mais seguras,
dedicado ao tema da dignidade da criança na era digital. Este evento retomou a
mensagem lançada um ano antes, em Roma, no Congresso internacional sobre o
mesmo tema, ao qual dei todo o meu apoio e encorajamento. Agradeço, pois, a
todos os líderes que estão empenhados neste campo e asseguro o apoio, a
solidariedade e a participação da Igreja Católica nesta causa importantíssima
da proteção dos menores em todas as suas expressões.
Aqui, no deserto, abriu-se um caminho
de fecundo desenvolvimento que, a partir do trabalho, dá esperança a muitas
pessoas de vários povos, culturas e credos. E, entre elas, contam-se também
muitos cristãos, cuja presença na região remonta séculos atrás tendo
contribuído significativamente para o crescimento e bem-estar do país. Além das
próprias capacidades profissionais, trazem-vos a genuinidade da sua fé. O
respeito e a tolerância que encontram, bem como os necessários lugares de culto
onde rezam, permitem-lhes aquele amadurecimento espiritual que se traduz em
benefício para a sociedade inteira. Encorajo-vos a continuar por este caminho,
para que quantos vivem aqui ou estão de passagem conservem a imagem não só das
grandes obras erguidas no deserto, mas também duma nação que inclui e abraça a
todos.
É com este espírito que almejo, não
só aqui mas em toda a amada e nevrálgica região do Oriente Médio, oportunidades
concretas de encontro: sociedades onde pessoas de diferentes religiões tenham o
mesmo direito de cidadania e onde só à violência, em todas as suas formas, se
tire tal direito.
Uma convivência fraterna, fundada na
educação e na justiça, e um desenvolvimento humano, construído sobre a inclusão
acolhedora e sobre os direitos de todos, constituem sementes de paz, que as
religiões são chamadas a fazer germinar. Cabe a elas neste delicado momento
histórico, talvez como nunca antes, uma tarefa que não se pode adiar mais:
contribuir ativamente para desmilitarizar o coração do homem.
A corrida aos armamentos, o alargamento das respetivas zonas de influência, as
políticas agressivas em detrimento dos outros nunca trarão estabilidade. A
guerra nada mais pode criar senão miséria; as armas nada mais, senão morte!
A fraternidade humana impõe-nos, a
nós representantes das religiões, o dever de banir toda a nuance de aprovação
da palavra guerra. Restituamo-la à sua miserável crueza. Estão sob os nossos
olhos as suas consequências nefastas. Penso em particular no Iémen, na Síria,
no Iraque e na Líbia. Juntos, irmãos na única família humana querida por Deus,
comprometamo-nos contra a lógica da força armada, contra a monetarização das
relações, o armamento das fronteiras, o levantamento de muros, o amordaçamento
dos pobres; oponhamos a tudo isto a força suave da oração e o empenho diário no
diálogo. Que o nosso estar juntos hoje seja uma mensagem de confiança, um
encorajamento a todos os homens de boa vontade para que não se rendam aos
dilúvios da violência nem à desertificação do altruísmo. Deus está com o homem
que procura a paz. E, do céu, abençoa cada passo que se realiza, neste caminho,
sobre a terra.
[1] Bento XVI, Discurso aos
novos Embaixadores junto da Santa Sé (16/XII/2010).
[2] Francisco, Mensagem para
o Dia Mundial da Paz de 2015 (8/XII/2014), 2
[3] Conc. Ecum. Vat. II, Decl. sobre
as relações da Igreja com as religiões não-cristãs Nostra aetate,
5.
[4] Cf. Francisco, Discurso
aos participantes na Conferência Internacional pela Paz (Al-Azhar
Conference Centre, Cairo, 28/IV/2017).
[5] F. Dostoiévski, Os irmãos
Karamazov, II, 2 (Milão 2012), 60.
[6] Francisco, Audiência
Geral inter-religiosa (28/X/2015).
[7] Cf. Terêncio, Heautontimorumenos I,
1, 25.
Fonte:
Vatican News
Nenhum comentário:
Postar um comentário