O que aprendemos com a Bíblia
O mês de setembro é dedicado na Igreja à Sagrada Escritura, desejando
despertar o católico à leitura diária da Palavra de Deus, tendo-a como
componente central em nossas orações e estudos. Tudo isto se motiva pelo
testemunho de São Jerônimo, genuíno leitor e estudioso das Sagradas Escrituras e
zeloso tradutor para a tradição latina. Mas em meio ao manuseio bíblico é
importante ater-se ao que de fato se pode aprender com a Bíblia e aqui é muito
curiosa a tradição talmúdica, que é uma interpretação que os sábios judeus dão à
Torá, originando uma ética fundada nas Sagradas Escrituras.
Acerca de uma ética que estaria fundada nas Sagradas Escrituras é importante,
antes da contribuição talmúdica, ver algumas indicações do Sagrado Magistério. O
então Papa Bento XVI escreveu uma encíclica sobre a justiça e a caridade, nela,
Bento XVI ressalta que é necessário “dar resposta às exigências morais mais
profundas da pessoa […] de fato, a economia tem necessidade da ética para o seu
correto funcionamento; não de uma ética qualquer, mas de uma ética amiga da
pessoa” (CV, n. 45) e continua Bento XVI, afirmando que no campo da ética “a
doutrina social da Igreja tem um contributo próprio e específico para dar, que
se funda na criação do homem ‘à imagem de Deus’((Gn 1,27)” (CV, n. 45). Assim,
reconhecendo o contributo da doutrina social da Igreja no campo da ética, o
mesmo Bento XVI, na Exortação Apostólica Pós-Sinodal, Verbum Domini,
afirma que “a Palavra de Deus impele o homem para relações animadas pela
retidão e pela justiça, confirma o valor precioso aos olhos de Deus de todas as
fadigas do homem para tornar o mundo mais justo e mais habitável. A própria
Palavra de Deus denuncia, sem ambiguidades, as injustiças e promove a
solidariedade e a igualdade” (VD, n. 100). Frente a isto, fica claro que as
Sagradas Escrituras são fonte de uma “ética amiga da pessoa”. Ainda no Sagrado
Magistério nos indica o Papa Francisco, “Jesus retoma a fé bíblica no Deus
criador e destaca um dado fundamental: Deus é Pai (cf.: Mat 11,25). Em colóquio
com os seus discípulos, Jesus convida-os a reconhecer a relação paterna que Deus
tem com todas as criaturas.” Por fim, Na Bula Misericordiae Vultus o
Papa Francisco também nos dá um indicativo da fonte de uma ética amiga da
pessoa, diz ele que “nas parábolas dedicadas à misericórdia, Jesus revela a
natureza de Deus como a de um Pai que nunca se dá por vencido enquanto não tiver
dissolvido o pecado e superada a recusa com a compaixão e a misericórdia.” (MV,
n. 9).
De fronte a esta ética amiga da pessoa, que nasce da Palavra Sagrada, vemos
ainda que a CNBB propôs para este ano o Livro do Profeta Miquéias, para estudo e
oração, mas sobretudo como apelo à nossa conversão. O profeta Miquéias pode ser
nominado como o profeta do juízo sobre Samaria e Jerusalém. Estes são os dois
centros do poder monárquico e tinham se tornado centro de irradiação do
esquecimento dos empobrecidos e exploração deles.
Os capítulos 2 e 3 Miquéias apresentam todo o modo de comportar-se que é
inimigo do homem. Corrói a vida humana para promover a opulência de uns poucos,
como diz o profeta: “ai daqueles que planejam iniquidade e que tramam o mal
em seus leitos! Ao amanhecer, eles o praticam, porque está no poder de sua mão.
Se cobiçam campos, eles o roubam, se casas, eles as tomam; eles oprimem o varão
e sua casa, o homem e sua herança.” (Mq 2,1-2). Miquéias acusa radicalmente
os opressores que torturam os pobres e esquecem da Aliança com Deus. O mal é tão
grande que o profeta chega a metáforas que assustam o leitor: “e eu digo:
ouvi, pois, chefes de Jacó e magistrados da casa de Israel! Por acaso não cabe a
vós conhecer o direito, a vós que odiais o bem e amais o mal, (que lhes
arrancais a pele, e a carne de seus ossos)? Aqueles que comeram a carne de meu
povo, arrancaram-lhe a pele, quebraram-lhe os ossos, cortaram-no como carne na
panela e como vianda dentro do caldeirão.” (Mq 3,1-3). O mesmo profeta que
retrata tamanho mal é o que apresenta esperança na restauração realizada pelo
próprio Deus, inclusive com a esperança messiânica (Mq 5,1) e o perdão divino
que traz a vida plena à descendência de Abraão (Mq 7,18-20).
A profecia de Miquéias dirigida aos líderes de Israel é uma cobrança acerca
do direito e da justiça, pois o povo da Aliança estava sofrendo, porque os seus
líderes tinham rompido a fidelidade a Deus, esquecendo-se que essa fidelidade
passa pela vida do próximo; de sorte que a fé bíblica não se compõe unicamente
de definições de Deus, mas, sobretudo, de uma ética a partir da Aliança do
Sinai. A infidelidade a essa Aliança é o pronto esquecimento do outro, a sua
morte, e o surgimento de um modo comportamental que é inimigo da pessoa humana,
pois substitui seu valor por bens, por dinheiro, por fama e às vezes por
prazer.
Diz um filósofo judeu, a partir do Talmude: “há relação de homem para homem
que não seja ética? – a tal questão ele responde reconhecendo que essa relação
se dá com o rosto que é vestígio de Deus. Cada homem maltratado, cada mulher
usurpada em sua dignidade, cada criança explorada em sua fragilidade e inocência
é vestígio de Deus, de modo que nesses rostos brilha o próprio rosto de Deus,
segundo os amoraim, rabinos do talmude. Assim, suas lágrimas são as do
próprio Deus. Por isso, o profeta se levanta, e é exatamente isso que o profeta
aprende com a Bíblia, com a Aliança, a não se apascentar com a injustiça e a
iniquidade.
O profeta se sente responsável por aquele que sofre, ainda que lhe seja um
desconhecido, esse que sofre é vestígio de Deus. A profecia, caminhando por tal
perspectiva, da fidelidade à Aliança, conjuga a definição de Deus com a justiça.
Essa é a vida mesmo de Jesus de Nazaré, falar do amor de Deus e proclamar a
justiça e o direito. Contudo, muitas vezes, a comunidade cristã defini
facilmente quem seja e o que seja Deus, mas se esquece do direito e da
justiça.
Em tempos difíceis, como os que se vive hoje no Brasil, aos quais o Papa
Francisco chamou de tristes, muitas vozes se levantam e alçam ferozmente a
defesa de Deus; contudo, quando se assiste ao esvaziamento de políticas de
inclusão e promoção humana pouco se vê tais conceitos se levantarem em favor do
que sofre. Parece faltar profecia em nossos dias. Mas, na verdade, quando falta
a profecia é porque a esperança está se esgotando. E como consideram os
amoraim, os rabinos do talmude, a voz profética é voz de Deus que
inspira o falar dos homens. Frente a isso vale lembrar Heshel, comentador
moderno do talmude, diz ele que o profeta é uma pessoa profundamente íntima com
Deus, por isso tem os mesmos sentimentos de Deus e pode falar em seu nome. Será
que hoje nos falta intimidade com Deus?
Em todo caso, o que aprendemos com a Bíblia?
Que Deus é misericordioso, criador e amor pleno, e também que não adiante tão
somente defini-lo, mas viver segundo a sua Aliança, que está toda orientada para
a glória de seu Santo Nome e a preservação, conservação da vida do outro, do
rosto que está à nossa frente (Ex 20,1-17).
Emmanuel Levinas, filósofo judeu, chama a ética fundada na Torá de uma ética
da alteridade, ética em direção ao outro; Bento XVI, reconhecendo a Palavra como
fonte de ações guiadas à retidão e à justiça, propõe uma ética amiga da pessoa,
em oposição clara a uma ética totalitarista, financeira e excludente. Enfim, uma
Palavra que nos leva a conhecer a Deus, também faz brilhar o valor daquele que é
ordinariamente o seu vestígio: o ser humano.
A profecia de Israel sabia bem que as entranhas de Deus se contorcem com o
sofrimento humano. É uma pena que alguns “homens de fé” coloquem o ódio, a
ganância e o discurso moralista à frente da ética, do comportamento bom, que
emana da Sagrada Escritura.
Pe. Abimael F. Nascimento, msc
Mestre em Teologia pela PUC-SP
Paróquia Nossa Senhora do Sagrado Coração.
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