Roma (ZENIT.org). - Publicamos um artigo de autoria do Pe. Raniero Cantalamessa, OFM Cap., pregador da Casa Pontifícia, sobre as polêmicas suscitadas por sua pregação deste ano na celebração da Paixão do Senhor.
* * *
Passado o clamor que se seguiu à minha pregação de Sexta-Feira Santa em São Pedro, na presença do Papa, gostaria de esclarecer quais eram minhas intenções ao proferir as frases incriminadas em minha homilia, para que o incidente não prejudique o diálogo judaico-cristão, mas sim o estimule; e também para mostrar que as reações no mundo judaico não foram as mesmas.
Aproveitando o fato de que neste ano a Páscoa judaica ocorria na mesma semana da Páscoa cristã, decidi fazer chegar aos judeus uma saudação da parte dos cristãos, no contexto da Sexta-Feira Santa, que sempre foi, para eles, ocasião de um sofrimento compreensível. Assim, o tema central da pregação era a oposição à violência, algo de que o povo judeu teve muita experiência ao longo dos séculos. Já em uma ocasião anterior, em 1998, numa coincidência análoga, dediquei integralmente a pregação de Sexta-Feira Santa a esclarecer as raízes do antissemitismo cristão, unindo-me aos pedidos de perdão, lançados naquele momento ao mundo judaico pelo Papa João Paulo II. A imprensa, incluindo a judaica, deu ampla cobertura ao discurso.
Poucos dias antes da Sexta-Feira Santa, recebi uma carta de um amigo judeu italiano (a carta de fato existe, não se trata de uma ficção literária!); ele comparava a certos aspectos do antissemitismo às contínuas investidas contra a Igreja e o Papa, em particular o uso do estereótipo e a transferência da responsabilidade individual para a coletiva nos casos de pedofilia por parte do clero. Decidi então, com o consentimento do autor, citá-la na pregação, uma vez que me parecia um gesto de grande nobreza da parte de um judeu expressar, num momento com aquele, sua solidariedade para com o líder da Igreja Católica, um gesto que, a meu ver, encorajaria os cristãos a fazer o mesmo, em circunstâncias semelhantes, no trato com o povo judeu.
Nem eu nem meu amigo pensávamos minimamente no antissemitismo da Shoá, mas sim no antissemitismo como postura cultural, algo bem mais antigo e disseminado que a Shoá. O antissemitismo, como aquele do caso Dreyfus ou aquele que consiste em atribuir a todo o povo judeu - incluindo o atual - a responsabilidade pela morte de Cristo (caso típico, aliás, de transferência de responsabilidade individual para a coletiva!).
Assim entendida, a comparação não me parecia tão absurda quanto se tentou fazer crer. Poucas semanas antes, um jornalista leigo, Ernesto Galli della Loggia, escrevendo na primeira página do "Corriere della sera", denunciava a difusão, na cultura moderna, de um verdadeiro e próprio "anticristianismo". São muitos, de resto, os que consideram que, mais do que dar amor e compaixão às vítimas de pedofilia, a campanha dos veículos de comunicação é movida pelo desejo do colocar a Igreja de joelhos. É algo que lembra o "Ecrasez l'infame" ("Esmagai o infame"), de Voltaire. O ex-prefeito de Nova York, Ed Koch, em um artigo do The Jerusalem Post, escreveu: "Creio que os contínuos ataques por parte da mídia contra a Igreja Católica e o Papa Bento XVI se converteram em manifestações de anticatolicismo. A sequência de artigos sobre os mesmos eventos já não tem, a meu ver, a intenção de informar, mas sim de punir".
Isto não significa, de modo algum, abafar ou amenizar a gravidade dos casos de pedofilia perpetrados pelo clero. Naquela mesma homilia eu falava, ainda que este não fosse o tema principal do discurso, da "violência contra crianças que com a qual estão seguramente manchados não poucos membros do clero". Em uma pregação à Casa Pontifícia no Advento de 2006, tomei a iniciativa de propor um dia de jejum e penitência para expressar solidariedade às vítimas da pedofilia, uma proposta que encontrou ampla repercussão junto à imprensa.
Como foi possível, portanto, que estas premissas bem-intencionadas pudessem engendrar uma tempestade midiática destas proporções? Quem explica é um rabino judeu, uma semana após o incidente, no jornal israelense de maior circulação, The Jerusalem Post (11.04.2010), em um artigo intitulado, "Somos maus ouvintes". Vale a pena retomar algumas partes deste texto, pois mostram como, quando corretamente entendida, minha pregação não representa um passo para trás no diálogo com os judeus, mas sim um passo adiante.
Devo pensar, escreve o rabino Alon Goshen Gottstein, que nenhum dos porta-vozes judeus que criticaram as afirmações do pregador leu sua homilia. Estes, muito provavelmente, reagiram a um jornalista que pediu para que comentasse um acerta frase, e deram respostas referentes àquela frase. Os jornalistas, extrapolando uma citação de um texto mais longo, fixam os termos do problema, os porta-vozes judeus respondem, e assim nasce uma história, se cria um escândalo...
Uma consulta àquilo que o pregador franciscano realmente disse nos fornece uma história diferente, sobre a qual o mínimo que se pode dizer é que dissipa a impressão negativa gerada pelas frases que constituíram os títulos dos jornais. A homilia da Sexta-Feira Santa foi, por séculos, o momento mais temido pelos judeus. Após ter escutado tal homilia, as multidões saíam pelas ruas e os judeus temiam por suas vidas. As representações teatrais da Paixão de Cristo eram fonte constante de violência contra os hebreus... Tendo estas imagens na lembrança, surpreende notar aquilo que o Pe. Cantalamessa realmente disse naquela ocasião. Ele aproveita o momento na Basílica de São Pedro para, diante do Papa, desejar "Boas festas de Páscoa" aos judeus! Mas o pregador não se detém aí: saúda a nós, judeus, com palavras tomadas da Mishna, citadas no Hagadda, o mais popular dos textos hebraicos. Pensar nos judeus como irmãos de fé durante a liturgia papal de Sexta-Feira Santa é o fruto de décadas de trabalho no campo das relações judaico-cristãs. Que tal coisa possa ter sido dita desta forma é que deveria ter sido notícia...
Nós não pudemos observar tudo isso porque notamos apenas a comparação entre os violentos ataques contra a Igreja e aqueles perpetrados contra os judeus. E mesmo neste caso, nos omitimos de escutar por inteiro a voz do judeu citado pelo padre franciscano. "Há apenas uma resposta adequada diante dos fatos: o reconhecimento do significado sereno e profundo do que ocorreu e dizer: Obrigado, Pe. Cantalamessa!"
O Pe. Cantalamessa ofereceu os devidos pedidos de desculpas, mas também nós devemos pedir desculpas por nossa falta de não ter escutado a mensagem tal qual fora pronunciada, por ter permitido à mídia criar uma falsa história, ignorando a verdadeira. A batalha contra as apresentações seletivas e superficiais de nossa mensagem religiosa é uma batalha comum, na qual as vozes das pessoas de todas as religiões devem colaborar. "O tema da homilia do pregador era contra a violência. Estes últimos fatos serviram para nos mostrar que também escutá-lo mal pode ser fonte de violência".
À voz do rabino de Jerusalém se uniu também a de Guido Guastalla, assessor para a cultura da comunidade hebraica de Livorno, em um artigo publicado pelo Cultura cattolica e reproduzido no L'Osservatore Romano de 19 de abril de 2010. Por conta de minha pregação, parte da opinião pública e da imprensa italiana promoveu, nos dias que se seguiram à Páscoa, uma campanha para suspender a laurea honoris causa em Ciências da Comunicação que a Universidade de Macerata havia decretado me conceder. Mais uma vez, foi uma judia, a docente de biologia Marisa Levi, cujo pai perdera sua cadeira durante o regime fascista, quem assumiu minha defesa. Em uma carta de apoio ao Reitor, notava: "O fato de terem sido escritas por um judeu tornavam muito mais significativas aquelas palavras de solidariedade ao Papa, citadas pelo Pe. Cantalamessa. Para além deste caso específico, preocupo-me muito com um sistema de informação que, partindo de palavras deliberadamente selecionadas e fora de contexto, as divulga com extrema rapidez, sem saber o que de fato a pessoa disse na verdade".
Espero que esta nota sirva para tranquilizar meus leitores e ouvintes espalhados pelo mundo, desconcertados por aquilo que leram e ouviram na mídia e, principalmente, para convencer meus amigos judeus que meus sentimentos para com eles não mudaram e que eles têm, no pregador da Casa Pontifícia, um promotor, e não um inimigo do diálogo com eles.
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Passado o clamor que se seguiu à minha pregação de Sexta-Feira Santa em São Pedro, na presença do Papa, gostaria de esclarecer quais eram minhas intenções ao proferir as frases incriminadas em minha homilia, para que o incidente não prejudique o diálogo judaico-cristão, mas sim o estimule; e também para mostrar que as reações no mundo judaico não foram as mesmas.
Aproveitando o fato de que neste ano a Páscoa judaica ocorria na mesma semana da Páscoa cristã, decidi fazer chegar aos judeus uma saudação da parte dos cristãos, no contexto da Sexta-Feira Santa, que sempre foi, para eles, ocasião de um sofrimento compreensível. Assim, o tema central da pregação era a oposição à violência, algo de que o povo judeu teve muita experiência ao longo dos séculos. Já em uma ocasião anterior, em 1998, numa coincidência análoga, dediquei integralmente a pregação de Sexta-Feira Santa a esclarecer as raízes do antissemitismo cristão, unindo-me aos pedidos de perdão, lançados naquele momento ao mundo judaico pelo Papa João Paulo II. A imprensa, incluindo a judaica, deu ampla cobertura ao discurso.
Poucos dias antes da Sexta-Feira Santa, recebi uma carta de um amigo judeu italiano (a carta de fato existe, não se trata de uma ficção literária!); ele comparava a certos aspectos do antissemitismo às contínuas investidas contra a Igreja e o Papa, em particular o uso do estereótipo e a transferência da responsabilidade individual para a coletiva nos casos de pedofilia por parte do clero. Decidi então, com o consentimento do autor, citá-la na pregação, uma vez que me parecia um gesto de grande nobreza da parte de um judeu expressar, num momento com aquele, sua solidariedade para com o líder da Igreja Católica, um gesto que, a meu ver, encorajaria os cristãos a fazer o mesmo, em circunstâncias semelhantes, no trato com o povo judeu.
Nem eu nem meu amigo pensávamos minimamente no antissemitismo da Shoá, mas sim no antissemitismo como postura cultural, algo bem mais antigo e disseminado que a Shoá. O antissemitismo, como aquele do caso Dreyfus ou aquele que consiste em atribuir a todo o povo judeu - incluindo o atual - a responsabilidade pela morte de Cristo (caso típico, aliás, de transferência de responsabilidade individual para a coletiva!).
Assim entendida, a comparação não me parecia tão absurda quanto se tentou fazer crer. Poucas semanas antes, um jornalista leigo, Ernesto Galli della Loggia, escrevendo na primeira página do "Corriere della sera", denunciava a difusão, na cultura moderna, de um verdadeiro e próprio "anticristianismo". São muitos, de resto, os que consideram que, mais do que dar amor e compaixão às vítimas de pedofilia, a campanha dos veículos de comunicação é movida pelo desejo do colocar a Igreja de joelhos. É algo que lembra o "Ecrasez l'infame" ("Esmagai o infame"), de Voltaire. O ex-prefeito de Nova York, Ed Koch, em um artigo do The Jerusalem Post, escreveu: "Creio que os contínuos ataques por parte da mídia contra a Igreja Católica e o Papa Bento XVI se converteram em manifestações de anticatolicismo. A sequência de artigos sobre os mesmos eventos já não tem, a meu ver, a intenção de informar, mas sim de punir".
Isto não significa, de modo algum, abafar ou amenizar a gravidade dos casos de pedofilia perpetrados pelo clero. Naquela mesma homilia eu falava, ainda que este não fosse o tema principal do discurso, da "violência contra crianças que com a qual estão seguramente manchados não poucos membros do clero". Em uma pregação à Casa Pontifícia no Advento de 2006, tomei a iniciativa de propor um dia de jejum e penitência para expressar solidariedade às vítimas da pedofilia, uma proposta que encontrou ampla repercussão junto à imprensa.
Como foi possível, portanto, que estas premissas bem-intencionadas pudessem engendrar uma tempestade midiática destas proporções? Quem explica é um rabino judeu, uma semana após o incidente, no jornal israelense de maior circulação, The Jerusalem Post (11.04.2010), em um artigo intitulado, "Somos maus ouvintes". Vale a pena retomar algumas partes deste texto, pois mostram como, quando corretamente entendida, minha pregação não representa um passo para trás no diálogo com os judeus, mas sim um passo adiante.
Devo pensar, escreve o rabino Alon Goshen Gottstein, que nenhum dos porta-vozes judeus que criticaram as afirmações do pregador leu sua homilia. Estes, muito provavelmente, reagiram a um jornalista que pediu para que comentasse um acerta frase, e deram respostas referentes àquela frase. Os jornalistas, extrapolando uma citação de um texto mais longo, fixam os termos do problema, os porta-vozes judeus respondem, e assim nasce uma história, se cria um escândalo...
Uma consulta àquilo que o pregador franciscano realmente disse nos fornece uma história diferente, sobre a qual o mínimo que se pode dizer é que dissipa a impressão negativa gerada pelas frases que constituíram os títulos dos jornais. A homilia da Sexta-Feira Santa foi, por séculos, o momento mais temido pelos judeus. Após ter escutado tal homilia, as multidões saíam pelas ruas e os judeus temiam por suas vidas. As representações teatrais da Paixão de Cristo eram fonte constante de violência contra os hebreus... Tendo estas imagens na lembrança, surpreende notar aquilo que o Pe. Cantalamessa realmente disse naquela ocasião. Ele aproveita o momento na Basílica de São Pedro para, diante do Papa, desejar "Boas festas de Páscoa" aos judeus! Mas o pregador não se detém aí: saúda a nós, judeus, com palavras tomadas da Mishna, citadas no Hagadda, o mais popular dos textos hebraicos. Pensar nos judeus como irmãos de fé durante a liturgia papal de Sexta-Feira Santa é o fruto de décadas de trabalho no campo das relações judaico-cristãs. Que tal coisa possa ter sido dita desta forma é que deveria ter sido notícia...
Nós não pudemos observar tudo isso porque notamos apenas a comparação entre os violentos ataques contra a Igreja e aqueles perpetrados contra os judeus. E mesmo neste caso, nos omitimos de escutar por inteiro a voz do judeu citado pelo padre franciscano. "Há apenas uma resposta adequada diante dos fatos: o reconhecimento do significado sereno e profundo do que ocorreu e dizer: Obrigado, Pe. Cantalamessa!"
O Pe. Cantalamessa ofereceu os devidos pedidos de desculpas, mas também nós devemos pedir desculpas por nossa falta de não ter escutado a mensagem tal qual fora pronunciada, por ter permitido à mídia criar uma falsa história, ignorando a verdadeira. A batalha contra as apresentações seletivas e superficiais de nossa mensagem religiosa é uma batalha comum, na qual as vozes das pessoas de todas as religiões devem colaborar. "O tema da homilia do pregador era contra a violência. Estes últimos fatos serviram para nos mostrar que também escutá-lo mal pode ser fonte de violência".
À voz do rabino de Jerusalém se uniu também a de Guido Guastalla, assessor para a cultura da comunidade hebraica de Livorno, em um artigo publicado pelo Cultura cattolica e reproduzido no L'Osservatore Romano de 19 de abril de 2010. Por conta de minha pregação, parte da opinião pública e da imprensa italiana promoveu, nos dias que se seguiram à Páscoa, uma campanha para suspender a laurea honoris causa em Ciências da Comunicação que a Universidade de Macerata havia decretado me conceder. Mais uma vez, foi uma judia, a docente de biologia Marisa Levi, cujo pai perdera sua cadeira durante o regime fascista, quem assumiu minha defesa. Em uma carta de apoio ao Reitor, notava: "O fato de terem sido escritas por um judeu tornavam muito mais significativas aquelas palavras de solidariedade ao Papa, citadas pelo Pe. Cantalamessa. Para além deste caso específico, preocupo-me muito com um sistema de informação que, partindo de palavras deliberadamente selecionadas e fora de contexto, as divulga com extrema rapidez, sem saber o que de fato a pessoa disse na verdade".
Espero que esta nota sirva para tranquilizar meus leitores e ouvintes espalhados pelo mundo, desconcertados por aquilo que leram e ouviram na mídia e, principalmente, para convencer meus amigos judeus que meus sentimentos para com eles não mudaram e que eles têm, no pregador da Casa Pontifícia, um promotor, e não um inimigo do diálogo com eles.
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