segunda-feira, 13 de janeiro de 2025

AUTOBIOGRAFIA DO PAPA: HUMILDADE, SENSO DE HUMOR, INFÂNCIA E FAMÍ´LIA


Quatro jornais italianos disponibilizam vários trechos da autobiografia do Papa (“Spera”), escrita com Carlo Musso, que será lançada na terça-feira em vários países. Aqui estão os trechos publicados em: La Stampa, Avvenire, Il Messaggero e Il Giorno

La vita richiede umiltà ("A vida requer humildade")

FRANCISCO

Não teriam se formado todos juntos, no final do ano 1955, aqueles quatorze jovens que, em março de seis anos antes, botaram os pés pela primeira vez na Escuela Técnica Especializada en Industrias Chimicas N° 12, cheios de esperança. Não todos, infelizmente. Alguém teria caído tragicamente ao longo do caminho.

Era o filho de um policial. E provavelmente, em muitos aspectos, o mais inteligente e talentoso de todos nós, apaixonado e profundo conhecedor de música clássica e com uma cultura literária igual à sua formação musical… Era um gênio aquele jovem grande e robusto, o mais corpulento entre nós. Um gênio.

Mas a mente humana às vezes é um mistério insondável. E em um dia que parecia como outro qualquer, aquele jovem pegou a arma do pai e matou um colega, um amigo do bairro.

A notícia soou como um disparo de pistola também para nós, nos chocou. Trancafiaram-no na ala penal do manicômio, e eu fui visitá-lo. Foi a minha primeira, concreta experiência de prisão, duplamente prisão porque era também uma penitenciária para doentes mentais. Pude saudar meu amigo somente por uma pequena janela gradeada, dividida em quatro por uma grade e emoldurada por uma pesada porta de ferro. E foi terrível, fiquei profundamente perturbado com aquilo. Voltei para lá com alguns companheiros para visitá-lo. Poucos dias depois, porém, ouvi um zelador da escola e alguns meninos de outro curso falando dele em tom de zombaria. Fiquei furioso. Contei-lhes tudo, depois corri ao diretor para expressar minha desaprovação: para dizer que coisas semelhantes nunca mais deveriam acontecer, que era ainda mais grave pois estava envolvido também um funcionário, que aquele menino já estava sofrendo o suficiente, entre manicômio e prisão. Aquela explosão me daria alguma reputação na escola como um homem honesto, não sei o quanto era merecida; acontece assim com a fama. Meu amigo depois foi enviado para um reformatório e continuamos a nos corresponder. Ele foi salvo da prisão perpétua porque, na época dos acontecimentos, ainda era menor de idade. Ele foi libertado alguns anos mais tarde.

Depois da formatura, quando eu já estava no noviciado, um ex colega me ligou: contou-me que tinha conseguido entrar em contato com a irmã daquele jovem, e que ela, aflita, lhe havia dito que, logo após ter saído do reformatório, havia cometido suicídio. Ele devia ter vinte e quatro anos.

Às vezes, como diz o salmo, o coração do homem é um abismo. Foi uma dor, que me trouxe à mente e ao coração uma outra.

Eu estava no meu quarto ano quando fui abordado no ônibus por um menino do primeiro ano. Parece que me havia pedido se eu poderia procurar para ele algum livro que lhe seria útil. Eu disse que sim, que tinha em casa e levaria para ele, e foi assim que iniciou o relacionamento. Ele era filho único e bem conhecido na escola pelos problemas disciplinares que causava. Eu já havia sentido dentro de mim o chamado, percebia de forma intensa a minha vocação, que no entanto não havia expressado aos outros. Vi que aquele menino ainda não havia feito a primeira comunhão e, enfim, comecei a acompanhá-lo, a conversar com ele, a ajudá-lo como eu podia. Eu também fui à casa dele para conhecer seus pais, duas pessoas boas, a família Heredia, mas… Mas no final, quando eu estava na sexta série, aquele menino matou a mãe dele com uma faca. Ele teria quinze anos, não mais.

Lembro-me do velório naquela casa, do rosto pálido do pai, de sua dor dupla e implacável. Parecia a máscara de Jó: "Meus olhos se escurecem de tristeza e todo o meu corpo não é mais que uma sombra." (Jó 1, 7).

Também aquela notícia irrompe na escola como um temporal. Eu poderia dizer que ela nos fez refletir sobre a tragédia e a complexidade da vida. Jorge Luis Borges escreveu: «Tentei, não sei com que sorte, compor histórias lineares. Não ouso afirmar que sejam simples; não há sobre a terra uma única página, uma única palavra que o seja."

É preciso humildade para representar a complexa experiência da vida.

Eu apreciava e estimava muito Borges, me tocavam a seriedade e a dignidade com as quais ele vivia sua existência. Era um homem muito sábio e muito profundo. Quando, aos vinte e sete anos, torna-se professor de literatura e psicologia no Colégio da Imaculada Conceição de Santa Fé, dá um curso de escrita criativa para os estudantes e pensei de enviar a ele, por meio de sua secretária, que era minha professora de piano, dois contos escritos pelos jovens. Eu parecia ainda mais jovem do que era, tanto que os estudantes, entre eles, haviam me apelidado de Carucha (cara de bebê), e Borges, ao contrário, já era um dos mais celebrados autores do século XX; mesmo assim, fez com que fossem lidos para ele - já que então ele estava praticamente cego – e  lhe agradaram muito. 

Também o convidei para dar algumas lições sobre o tema dos gaúchos na literatura e ele aceitou; ele conseguia falar sobre qualquer coisa, sem nunca dar ares de superioridade. Aos sessenta e seis anos, ele pegou um ônibus em Buenos Aires e viajou por oito horas, à noite, para chegar a Santa Fé. Em uma dessas ocasiões nos atrasamos porque, quando cheguei para buscá-lo no hotel, ele me perguntou se eu poderia ajudá-lo a se barbear. Ele era um agnóstico que recitava o Pai Nosso todas as noites, pois havia prometido à sua mãe que morreria com confortos da fé.

Aquele que escreveu palavras como estas só poderia ser um homem de espiritualidade: "Abel e Caim se encontraram depois da morte de Abel. Caminhavam no deserto e se reconheceram de longe, porque ambos eram muito altos. Os irmãos sentaram-se no chão, fizeram um fogo e comeram. Eles ficaram em silêncio, como pessoas cansadas fazem quando está terminando o dia. No céu havia algumas estrelas que ainda não tinham recebido seus nomes. À luz das chamas, Caim notou a marca da pedra na testa de Abel e, deixando cair o pão que estava prestes a levar à boca, pediu que seu crime fosse perdoado. Abel respondeu: "Você me matou ou eu matei você? Não me lembro mais; estamos aqui juntos como antes." "Agora eu sei que você realmente me perdoou", disse Caim, "pois esquecer é perdoar. Eu também tentarei esquecer..."

"Saber rir, fermento que faz crescer a alegria"

FRANCISCO

É também uma menina espirituosa, a esperança. Ele sabe que o humorismo, o sorriso, são o fermento da existência e um instrumento para enfrentar as dificuldades, até mesmo as cruzes, com resiliência. A ironia, depois, neste caso, pode se encaixar perfeitamente na sagaz definição do escritor Romain Gary, é uma declaração de dignidade,  «a afirmação da superioridade do ser humano sobre o que lhe acontece». […] Em família, quando criança, também essas eram matérias de educação dos nossos pais. Para todos nós, irmãos, uma pedagogia ao sentido da alegria, a uma saudável ironia, à brincadeira, era considerada algo importante. […]. A vida da minha família conheceu não poucas dificuldades, sofrimentos, lágrimas, mas mesmo nos momentos mais difíceis, experimentávamos que um sorriso, uma risada, conseguia extrair com força a energia para retomar o caminho certo.

Sobretudo papai nos ensinou muito. Não se trata de afastar, de fingir que nada acontece, de diminuir os problemas – o cômico, afinal, não é senão o trágico visto de trás – mas sim de manter dentro de si um espaço de alegria decisivo para enfrentá-los e superá-los. […] É para sublinhar este vínculo indissolúvel, este feliz matrimônio entre esperança e alegria que, nos meses que precederam a abertura da Porta Santa do novo Jubileu, quis encontrar no Vaticano um grupo de mais de cem artistas provenientes da mundo da comédia, de diversas nacionalidades e disciplinas. Alguém observou tratar-se de um grande salto desde quando atores e bufões eram destinados a ser sepultados em solo não consagrado, mas se alguém escolher assumir o nome de Francisco, do “bufão de Deus”, é provavelmente o mínimo que se possa esperar. Pouco depois, um deles me disse espirituosamente que é belo tentar fazer Deus rir... não fosse que, pelo fato da onisciência, ele te antecipa todas as piadas estragando-te o final. É precisamente esse o humorismo que faz bem ao coração.

A vida inevitavelmente tem suas próprias amarguras, fazem parte de cada caminho de esperança e conversão. Mas é preciso evitar a todo custo deixar-se abater pela melancolia, não permitir que ela se alastre no coração. […] São tentações às quais não estão imunes nem mesmo as pessoas consagradas. E infelizmente, acontece de encontrar entre elas pessoas amargas, melancólicas, mais autoritárias do que com autoridade, mais “solteirões” do que esposos da Igreja, mais funcionários do que pastores, ou mais superficiais do que alegres, e também isso certamente não está bem. Mas, em geral, nós, padres, temos uma boa propensão ao humorismo e também uma certa familiaridade com piadas e histórias, das quais ferquentemente somos, além de objetos, bons contadores.

Mesmo os Papas. João XXIII, cuja natureza brincalhona era bem conhecida, durante um discurso disse mais ou menos: «Acontece-me muitas vezes à noite que começo a pensar numa série de graves problemas. Então tomo a decisão corajosa e resoluta de ir de manhã falar com o Papa. Então eu me acordo todo suado e recordo que o Papa sou eu». Como o compreendo... E nem mesmo João Paulo II era uma exceção. Durante as sessões preparatórias de um conclave, quando ainda era o cardeal Wojtyła, um cardeal mais idoso e um tanto rígido aproximou-se dele com a intenção de repreendê-lo, porque ia esquiar, escalava montanhas, andava de bicicleta, nadava... «Eu não penso que sejam atividades adequadas ao seu papel», disse-lhe a meia voz. Ao que o futuro Papa respondeu: «Mas você sabia que na Polônia essas são atividades comuns para pelo menos 50% dos cardeais?». Naquela época, na Polônia, havia apenas dois cardeais.

A ironia é remédio, não somente para elevar e iluminar os outros, mas também para si mesmo, porque a autoironia é um instrumento poderoso para superar a tentação do narcisismo. Os narcisistas se olham continuamento no espelho, se pintam, se admiram, mas o melhor conselho diante do espelho é sempre rir de si mesmo. Isso nos fará bem. Demonstrará isso a evidência daquele antigo provérbio chinês, que diz que existem somente dois homens perfeitos: um morreu e o outro nunca nasceu. […] Nisto a Igreja tem, informalmente, também uma complexa série de categorizações de piadas e anedotas segundo as ordens, as congregações, as figuras. […] As piadas sobre os jesuítas e por jesuítas, então, são um um verdadeiro gênero, talvez comparável apenas àquelas sobre os Carabinieri na Itália, ou sobre as mães judias no humor iídiche.

Quanto ao perigo do narcisismo, do qual prevenir-se com as doses certas de auto-ironia, vem à mente aquela sobre um jesuíta um tanto vaidoso que tem um problema cardíaco e precisa ser internado no hospital. Antes de entrar na sala de cirurgia, aquele jesuíta pergunta a Deus: «Senhor, chegou a minha hora?». «Não, você viverá pelo menos mais quarenta anos», responde-lhe Deus. Assim que se recupera, aproveita para também fazer um transplante capilar, um lifting facial, uma lipoaspiração, pálpebras, dentes… enfim, sai de lá um homem diferente. Mas, do lado de fora do hospital, um carro o atropela e ele morre. Assim que comparece diante de Deus, ele protesta:  «Senhor, mas... tu me disseste que eu viveria mais quarenta anos!». E Deus: «Opa, desculpa... não te reconheci...».

E também me contaram uma que diz respeito diretamente a mim, aquela do Papa Francisco na América. Diz mais ou menos isso: assim que desembarca no aeroporto de Nova York para sua viagem apostólica aos Estados Unidos, o Papa Francisco encontra uma enorme limusine esperando por ele. Ele fica um pouco desconcertado com todo aquele luxo, mas depois pensa que há muito tempo não dirige, e nunca um carro como aquele, e em resumo diz para si mesmo: está bem, mas quando terei outra chance... Ele olha para a limusine e pergunta ao motorista: «Você me deixaria tentar?».

E o motorista: «Olha, eu realmente sinto muito, Santidade, mas eu realmente não posso fazer isso, o senhor conhece os procedimentos, o protocolo...». Mas como dizem, o Papa quando coloca alguma coisa na cabeça, bem, ele insiste e insiste até que por fim o outro cede. O Papa Francisco então se senta ao volante em uma dessas estradas enormes e... pega o gosto, começa a pisar no acelerador: 50 por hora, 80, 120... Até que ouve uma sirene e um carro de polícia que se aproxima que o faz parar. Um jovem policial se aproxima da janela escura, o Papa, um tanto intimidado, abaixa-a e o policial fica pálido. «Perdoe-me um momento», diz ele, e volta para o carro para chamar a central. «Chefe... Acho que tenho um problema.» E o chefe: «Qual é o problema?». «Bem, eu parei um carro por excesso de velocidade... mas tem um cara muito importante nele». «Quão importante? Éo prefeito?». «Não, chefe, mais que o prefeito...». «E mais que o prefeito, quem é? O governador?».«Não, mais… ». « Mas então poderia ser o presidente?».«Mais, eu acho...». «E quem poderia ser mais importante que o presidente?». «Olha, chefe, eu não sei exatamente quem ele é, mas vou lhe dizer que o Papa é o motorista dele!»

O Evangelho que nos admoesta a nos tornarmos como crianças (Mt 18,3), para a nossa própria salvação, recorda-nos desta forma também recuperar a sua capacidade de sorrir, que, para os psicólogos que se deram ao trabalho de a contar, revela-se mais de dez vezes superior àquela dos adultos.

Não há nada que me alegre mais hoje do que encontrar as crianças: se quando criança tive os meus mestres do sorriso, agora que sou velho, meus mentores muitas vezes são as crianças. São os encontros que mais me emocionam, que me fazem sentir melhor. E depois aqueles com os idosos: os idosos que abençoam a vida, deixando de lado todo ressentimento, que têm a alegria do vinho que se tornou bom ao longo dos anos, são irresistíveis.

Eles têm a graça do choro e do riso, como as crianças. Quando as pego nos braços, durante as audiências na Praça de São Pedro, na maioria das vezes as crianças sorriem; Outras, porém, ao me verem todo vestido de branco, acreditam que sou o médico que vem dar-lhes a injeção e então choram. São campeões da espontaneidade, de humanidade, e nos lembram que quem renuncia à própria humanidade renuncia a tudo, e que quando se torna difícil chorar seriamente ou rir apaixonadamente, é então que realmente começou o nosso declínio. Tornamo-nos anestesiados, e os adultos anestesiados não fazem bem nem a si mesmos, nem à sociedade, nem à Igreja.

Valores e simplicidade, assim nasce um Papa

FRANCISCO

Gosto da pontualidade, é uma virtude que aprendi a apreciar. E chegar no horário considero-o como meu dever, um sinal de educação e respeito. Mas era minha primeira vez e eu já estava atrasado. O tempo tinha se esgotado em uma semana e eu ainda não rinha me decidir. Eu também gostava de estar com minha mãe. Felizmente, a parteira, Sra. Palanconi, era uma mulher capaz e experiente que teria festejado até cinco mil nascimentos. Mas quando entendeu que se podia esperar mais, fez chamar o médico de família e ele correu até lá.

Ele chegou quando a mãe estava no quarto, deitada na cama: o Dr. Scanavino a examinou, depois a tranquilizou, e isso sempre foi uma ótima história em nossas reuniões familiares, ela começou a sentar-se de bruços, a pressionar e a "pular", para desencadear o trabalho de parto. E foi assim que eu vim ao mundo, no dia de São Lázaro de Betânia, o amigo que Jesus ressuscitou dos mortos. Eu "saí" pesando quase 5 quilos, e minha mãe com cerca de 44: foi um grande esforço, enfim, Maria Luisa Palanconi acompanharia todos nós, irmãos, por toda a vida, e depois até um dos filhos da minha irmã.

Não tenho lembrança do nascimento do segundo filho, meu irmão Oscar Adrián, que recebeu o nome de um tio materno, porque na época, em 30 de janeiro de 1938, eu tinha pouco mais de um ano. Mas me recordo do nascimento da minha irmã Marta Regina, em 24 de agosto de 1940. E sobretudo daquele do quarto firlho: uma cena íntima, familiar, que tenho diante dos olhos como se estivesse acontecendo neste momento. Nós, irmãos, estamos todos doentes, com gripe, Oscar e eu no nosso quarto e minha irmãzinha no dela. Chega o Dr. Rey Sumai e examina nós três, então caminha confiantemente pelo corredor em direção à biblioteca com os livros do papai, onde a mamãe está sentada.

A BOLSA

Ele entra, coloca a mão na barriga dela e exclama: «Ah, falta pouco!» Algumas horas depois, chega a Sra. Palanconi com sua grande bolsa. Papai e tio estão na cozinha. A porta da biblioteca se fecha diante de nós, mãe e parteira dentro, e nós, crianças, nos amontoamos atrás da porta, com os ouvidos atentos para escutar, para captar o momento em que o novo irmãozinho chegaria, o primeiro grito à vida. Os adultos nos falavam da cegonha que não se sabe nunca por que, talvez porque daquela cidade, desde a Grande Exposição Universal do final do século passado, parecia chegar tudo o que havia de mais novo e moderno, sempre tinha que vir de Paris, mas Oscar e eu já tínhamos entendido como as eram as coisas. Nós sabíamos como nasciam as crianças. E naquela noite, 16 de julho de 1942, nasceu Alberto Horacio. O time estava quase completo. Uma família comum, com dignidade. A dignidade foi um ensinamento que sempre esteve presente nas palavras e nos gestos dos nossos pais.

A CASA

Desde o meu segundo ano de vida até os meus vinte e um anos, sempre morei na Calle Membrillar, 531. Uma casa com um único andar, com três quartos, o dos meus pais e os dois que nós, irmãos e irmãs, dividíamos, um banheiro, uma cozinha com copa, uma sala de jantar mais formal, um terraço. Aquela casa e aquela rua foram para mim as raízes de Buenos Aires e da Argentina como um todo. Uma moradia simples em um bairro simples, todas as casas baixas; se respirava uma atmosfera calma e pacífica, um clima de confiança nos outros e no futuro. Se minha mãe tivesse que chegar um pouco tarde em casa, e ela tivesse medo que nós, crianças, já tivéssemos chegado da escola, ela deixava as chaves com o vigilante do bairro, bem na esquina; mas a verdade é que, como dizem, se podia dormir com a porta aberta. Um bairro de classe média no coração de uma cidade em constante mudança e de um grande país, um dos maiores do mundo. O censo nacional de 1869 contava uma população ainda longe dos dois milhões de habitantes, mas quando nasci, em 1936, já eram doze, número que crescia exponencialmente, e a capital era agora uma das maiores metrópoles do planeta Aqueles números eram destinados a mais que triplicar. 

Um país jovem, nascido em uma vasta e remota planície de uma das colônias mais remotas e suburbanas do vasto império espanhol, e que condensou sua história complexa, trágica e maravilhosa em pouco mais de dois séculos e um punhado de gerações. A minha pátria, pela qual continuo sentindo o mesmo amor, grande e intenso. O povo pelo qual rezo todos os dias, que me formou, me preparou e depois me ofereceu aos outros.

Também quando nasceu Maria Elena, sempre na casa de Membrillar, em 17 de fevereiro de 1948, depois que mamãe neste meio tempo perdeu um filho no início da gravidez, a tribo ficou completa. Com a chegada de Churrinche, um cãozinho de raça indefinida e indefinível, que batizamos em homenagem a outro indomável amigo de quatro patas dos Pampas que pertenceu aos avós maternos. Mamãe costumava dizer que nós cinco filhos éramos como os dedos de uma mão, cada um diferente do outro; todos diferentes e todos igualmente seus: «Porque se eu furar meu dedo sinto a mesma dor que sentiria se furasse outro».

IMIGRANTES

Tanos, é assim que nos chamam na Argentina. Entre os primeiros imigrantes italianos a chegar a La Plata, se destacavam inicialmente os genoveses, tanto que Xeneixes se tornou o epíteto para indicar quase todos. Entre os do Norte, depois, muitos tinham o sobrenome Battista, e assim Bachicha se tornou um sobrenome comum para os italianos. Quando finalmente se juntou a grande imigração do sul da península, calabreses, sicilianos, apúlios e campânios, e os que desembarcavam quando lhes perguntavam de onde vinham começaram a responder: «Soy Napulitano», acabou se tornando Tanos o nome coletivo para indicar a parte para o todo. Todos nós comedores de massa.

«Venho de uma família de emigrantes. Eles evitaram o naufrágio in extremis"

O livro “Spera” será lançado na terça-feira, 14  de janeiro, em cem países, a primeira vez que um pontífice conta a própria história de vida. Publicamos um trecho sobre o desastre do navio em que seus avós e seu pai deveriam ter embarcado em 1927.

PAPA FRANCISCO

Eles contaram que se ouviu um choque tremendo, como um terremoto. Toda a viagem tinha sido acompanhada de vibrações fortes e sinistras (...) mas isso era outra coisa: era mais como uma explosão, como uma bomba. (...) Não era uma bomba: era um trovão surdo, na verdade. (...) Um homem, depois de permanecer agarrado a um pedaço de madeira no oceano por horas, teria testemunhado que viu claramente a hélice e o eixo do motor de bombordo escorregarem. Completamente.

A hélice havia aberto uma ferida profunda no casco: a água entrava copiosamente (...). Eles disseram que os membros da orquestra receberam ordens de continuar tocando (...).

O navio continuava a inclinar-se cada vez mais, a escuridão avançava, o mar ficava cada vez mais agitado. Quando ficou claro que as garantias iniciais aos passageiros não eram mais suficientes, o comandante deu a ordem de parar os motores, soou a sirene de alarme e os operadores de rádio enviaram o primeiro SOS.

O sinal de socorro foi captado por várias embarcações (...). Eles correram para o local imediatamente, mas foram todos forçados a parar a uma certa distância porque uma grande coluna de fumaça branca levantou temores de uma explosão desastrosa nas caldeiras. Da ponte (...) o comandante tentava cada vez mais desesperadamente pedir calma e coordenava as operações de resgate, dando prioridade às mulheres e crianças. Mas quando a noite caiu (...) a situação piorou completamente. Os botes salva-vidas foram baixados, mas o navio estava terrivelmente inclinado: muitos afundaram imediatamente após bater no casco, outros ficaram em ruínas e inutilizáveis, entrando água que os passageiros foram obrigados a remover usando seus chapéus. Outros, tomados de assalto, viraram ou afundaram devido à sobrecarga. Muitos artesãos e agricultores dos vales e planícies nunca tinham visto o mar antes e não sabiam nadar.

Orações e gritos se misturavam.

Foi o pânico. Muitos passageiros caíram ou se jogaram no mar, afogando-se. Alguns foram tomados pelo desespero. Outros ainda foram devorados vivos por tubarões.

Naquele pandemônio houve inúmeras lutas, mas também gestos de coragem e abnegação. (...) Bem antes da meia-noite o navio estava completamente inundado, subiu verticalmente pela proa e com um último estrondoso gemido (...) afundou, a uma profundidade de mais de 1400 metros. (...) O comandante permaneceu a bordo até o final, tendo os músicos restantes tocado a Marcha Real. Seu corpo nunca foi encontrado. Certamente, pouco antes do navio afundar, muitos tiros foram ouvidos, disparados pelos oficiais que, depois de terem feito todo o possível pelos passageiros, decidiram que eles não enfrentariam o tormento do afogamento. (...) A recuperação dos poucos sobreviventes que tentavam se manter à tona (...) continuou até tarde da noite. Quando, antes do amanhecer, (...) outros vapores brasileiros chegaram, não encontraram mais sobreviventes.

Aquele navio, com quase 150 metros de comprimento, foi o orgulho da marinha mercante no início do século, o mais prestigioso transatlântico da frota italiana, transportou personalidades como Arturo Toscanini, Luigi Pirandello (...). Mas aqueles tempos passaram em um momento. No meio, houve uma guerra mundial, e o desgaste, a negligência e a escassa manutenção fizeram o resto. (...) Quando partiu para sua viagem final, para perplexidade de seu próprio comandante, tinha mais de 1.200 passageiros a bordo, a maioria migrantes do Piemonte, Ligúria e Vêneto. Mas também das Marcas, da Basilicata, da Calábria. Segundo dados fornecidos pelas autoridades italianas na época, pouco mais de 300 pessoas morreram no desastre, a maioria delas tripulantes; mas jornais sul-americanos relataram um número muito maior, mais que o dobro, incluindo também imigrantes ilegais, várias dezenas de emigrantes sírios e trabalhadores agrícolas que foram do interior da Itália para a América do Sul durante o inverno.

Minimizado ou encoberto pelos órgãos do regime, esse naufrágio foi o “Titanic” italiano.

Não sei dizer quantas vezes ouvi a história daquele navio que levava o nome da filha do Rei Vittorio Emanuele III (...). O Princesa Mafalda. Contaram essa história na família. Contaram isso na vizinhança. Era cantada nas canções populares dos migrantes, de um lado do oceano ao outro (...). Meus avós e seu único filho, Mario, o jovem que se tornaria meu pai, haviam comprado a passagem para aquela longa travessia, para aquele navio que zarpou do porto de Gênova em 11 de outubro de 1927, com destino a Buenos Aires. Mas não embarcaram. (...) Eles não conseguiram vender o que possuíam a tempo. No final, apesar de tudo, os Bergoglios foram obrigados a trocar a passagem e adiar a partida para a Argentina. É por isso que estou aqui agora. Vocês não imaginam quantas vezes me peguei agradecendo à Divina Providência.

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Fonte: https://www.vaticannews.va/pt/papa/news/2025-01/papa-francisco-autobiografia-carlo-musso.html

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