O pregador da Casa Pontifícia, cardeal Raniero Cantalamessa, OFMCap, propôs à Cúria Romana, nesta sexta-feira, 10 de março, a segunda pregação da Quaresma intitulada “O Evangelho é poder de Deus para todo aquele que crê” (Rm 1,16)
Fr. Raniero Card. Cantalamessa, OFMCap
“O EVANGELHO É PODER DE DEUS PARA TODO AQUELE QUE CRÊ”
(Rm 1,16)
Segunda Pregação, Quaresma de 2023
Da Evangelii Nuntiandi de
São Paulo VI à Evangelii gaudium do atual Sumo Pontífice, o
tema da evangelização tem estado no centro das atenções do Magistério papal. A
isso, têm contribuído as grandes encíclicas de São João Paulo II, como também a
instituição do Pontifício Conselho para a Evangelização, promovido por Bento
XVI. A mesma preocupação se nota no título dado à constituição para a reforma
da Cúria Praedicate Evangelium e na denominação “Dicastério
para a Evangelização”, dada à antiga Congregação de Propaganda Fide.
A mesma finalidade é designada agora principalmente ao Sínodo da Igreja. A ela,
isto é, à evangelização, gostaria de dedicar a presente meditação.
A definição
mais sucinta e mais impregnante da evangelização é a que se lê na Primeira
Carta de Pedro. Nela, os apóstolos são definidos: “aqueles que vos
evangelizaram em virtude do Espírito Santo” (1Pd 1,12). Aí está expresso o essencial
sobre a evangelização, isto é, o seu conteúdo – o Evangelho –
e o seu método – no Espírito Santo.
Para saber
o que se entende com a palavra “Evangelho”, a via mais segura é perguntar a
quem usou por primeiro esta palavra grega e a tornou canônica na linguagem
cristã, o apóstolo Paulo. Temos a felicidade de possuir uma exposição, de seu
próprio punho, que explica o que ele entende por “Evangelho”, e é a Carta aos
Romanos. O tema dela é anunciado com as palavras: “Eu não me envergonho do
evangelho, pois ele é poder de Deus para a salvação de todo aquele que crê”
(Rm 1,16).
Segunda pregação da Quaresma
Para o
sucesso de todo novo esforço de evangelização, é vital ter claro o núcleo
essencial do anúncio cristão, e isto ninguém trouxe à luz melhor do que o
apóstolo nos primeiros três capítulos da Carta aos Romanos. Do entender e
aplicar à situação atual a sua mensagem depende, estou convencido, se dos
nossos esforços nascerem filhos de Deus, ou se se terá que repetir amargamente
com Isaías: “Engravidamos e tivemos dores de parto, mas demos à luz o
vento; não trouxemos melhoras à terra, e não nasceram novos habitantes para o
mundo” (Is 26,18).
A mensagem
do Apóstolo naqueles três primeiros capítulos da sua Carta pode ser resumida em
dois pontos: primeiro, qual é a situação da humanidade diante de Deus em
seguida ao pecado; segundo, como se sai dela, isto é, como nos salvamos pela fé
e nos tornamos nova criatura. Sigamos o Apóstolo em seu estreito
raciocínio. Melhor, sigamos o Espírito que fala por meio dele. Quem já fez
viagens de avião, terá escutado algumas vezes o aviso: “Afivelem os cintos,
estamos passando por uma área de turbulência”. Seria preciso fazer ressoar o
mesmo aviso a quem se presta a ler as seguintes palavras de Paulo.
Revela-se
do céu a ira de Deus contra toda impiedade e injustiça dos homens que na
injustiça impedem a verdade, pois o que de Deus se pode conhecer é entre eles
manifesto, já que Deus o manifestou a eles. De fato, os atributos invisíveis de
Deus, seu poder eterno e sua divindade, são compreendidos através das coisas
feitas, desde a criação do mundo, a fim de que eles não tenham desculpa. Por
isso, mesmo tendo conhecido a Deus, nem o glorificaram como Deus, nem lhe deram
graças. Pelo contrário, perderam-se em seus pensamentos fúteis, e seu coração
insensato se obscureceu. Dizendo-se sábios, tornaram-se tolos e trocaram a
glória do Deus incorruptível pela aparência da imagem de um ser humano
corruptível e de pássaros, quadrúpedes e répteis (Rm
1,18-23).
O pecado
fundamental, o objeto primário da ira divina, é identificado, como se vê,
na asebeia, isto é, na impiedade. Em que consiste, exatamente,
tal impiedade, o Apóstolo explica imediatamente, afirmando que ela consiste na
rejeição em “glorificar” e “agradecer” a Deus. Estranho! Este fato de não
glorificar e agradecer a Deus o suficiente parece-nos, sim, um pecado, mas não
tão terrível e mortal. É preciso entender o que se esconde por detrás disso: a
rejeição em reconhecer Deus como Deus, o não lhe tributar a consideração que
lhe é devida. Consiste, poderíamos dizer, em “ignorar” Deus, onde ignorar não
significa tanto “não saber que existe”, mas “fazer como se não existisse”.
No Antigo
Testamento, ouvimos Moisés que grita ao povo: “Reconhecei que Deus é Deus!”
(cf. Dt 7,9) e um salmista retoma tal grito, dizendo: “Reconhecei que o Senhor
é Deus; Ele nos fez, nós somos dele” (Sl 100,3). Reduzido ao seu núcleo
germinativo, o pecado é negar este “reconhecimento”; é a tentativa, da parte da
criatura, de cancelar, de iniciativa própria, quase por prepotência, a
diferença infinita que há entre ela e Deus. O pecado ataca, de tal maneira, a própria
raiz das coisas; é um “impedir a verdade na injustiça”. É algo de muito mais
sombrio e terrível do que o homem possa imaginar ou dizer. Se os homens
soubessem, enquanto vivos, como o saberão no momento da morte, o que significa
a rejeição de Deus, morreriam de susto.
Tal
rejeição tomou corpo, ouvimos, na idolatria, pela qual se adora a criatura no
lugar do Criador. Na idolatria, o homem não “aceita” Deus, mas faz para si um
deus; é ele a decidir por Deus, não vice-versa. Os papéis são invertidos: o homem
se torna o oleiro e Deus o vaso que ele modela a seu bel-prazer (cf. Rm
9,20ss.). Hoje, esta antiga tentativa assumiu uma nova veste. Ela não consiste
em pôr algo – nem mesmo a si mesmo – no lugar de Deus, mas em abolir, pura e
simplesmente, o papel indicado pela palavra “Deus”. Niilismo! O Nada no lugar
de Deus. Mas não é o caso de nos determos sobre isso neste momento;
interromperia a escuta do Apóstolo, que, por sua vez, continua o seu firme
raciocínio.
Paulo
prossegue a sua acusação mostrando os frutos que brotam, no plano moral, da
rejeição de Deus. Daí deriva uma dissolução geral dos costumes, uma verdadeira
e própria “torrente de perdição” que arrasta a humanidade em ruína. E aqui, o
Apóstolo traça um quadro impressionante dos vícios da sociedade pagã. A coisa
mais importante a se considerar, em base a esta parte da mensagem paulina, não
é, contudo, esta lista de vícios, presente, além do mais, também junto aos
moralistas estoicos do tempo. A coisa mais desconcertante, à primeira vista, é
que São Paulo faz de tudo isso desordem moral, não a causa, mas o efeito da ira
divina. Por três vezes retorna a fórmula que afirma isso de modo inequívoco:
Por isso,
os entregou à impureza (...). Por causa disso, Deus os entregou a paixões
vergonhosas (...). E, porque não quiseram alcançar a Deus pelo conhecimento,
Deus os entregou ao seu reprovado modo de pensar (Rm
1,24.26.28).
Deus,
certamente, não “quer” tais coisas, mas ele as “permite” para fazer o homem
compreender aonde leva a rejeição a Ele. “Estas ações – escreve Santo Agostinho
– embora sejam castigo, são elas também pecados, pois a pena da iniquidade é
ser, ela própria, iniquidade; Deus intervém para punir o mal e, da sua mesma
punição, abundam outros pecados[1].
Não há
distinções diante de Deus entre judeus e gregos, entre fiéis e pagãos: “Todos
pecaram e estão destituídos da glória de Deus” (Rm 3,23). O Apóstolo
faz tanta questão de nos esclarecer este ponto, que a ele dedica todo o
capítulo segundo e parte do terceiro da sua Carta. É a humanidade inteira que
se encontra nesta situação de perdição, não este ou aquele indivíduo ou povo.
Onde está,
em tudo isso, a atualidade da mensagem do Apóstolo da qual eu falava? Está no
remédio que o Evangelho propõe a esta situação. Ele não consiste em se empenhar
em uma luta pela reforma moral da sociedade, para a correção dos seus vícios.
Seria, para ele, como querer desenraizar uma árvore começando por lhe tirar as
folhas ou os ramos mais expostos, ou então preocupar-se em eliminar a febre, ao
invés de tratar a doença que a provoca.
Traduzido
em linguagem atual, isto significa que a evangelização não começa com a moral,
mas com o querigma; na linguagem do Novo Testamento, não com a Lei, mas com o
Evangelho. E qual é o conteúdo, ou o núcleo central disso? O que Paulo quer
dizer por “Evangelho” quando diz que ele “poder de Deus para a salvação de todo
aquele que crê”? Crer no quê? “Manifestou-se a justiça de Deus!” (Rm
3,21): eis a novidade. Não são os homens que, improvisamente, mudaram vida e
costumes e se puseram a fazer o bem. O fato novo é que, na plenitude dos
tempos, Deus agiu, rompeu o silêncio, estendeu a sua mão por primeiro ao homem
pecador.
Mas ouçamos
agora diretamente o Apóstolo, que nos explica em que consiste este “agir” de
Deus. São palavras que temos lido ou escutado centenas de vezes, mas ama-se
escutar sempre de nova as árias de uma bela sinfonia:
Pois todos
pecaram e estão destituídos da glória de Deus. Esses são justificados
gratuitamente pela graça de Deus, por meio da redenção em Cristo Jesus. É ele
que Deus expôs como instrumento de expiação com o seu sangue, mediante a fé,
para demonstrar sua justiça, deixando sem castigo os pecados outrora cometidos
sob a tolerância de Deus; e para demonstrar sua justiça no tempo presente, a
fim de ser justo e tornar justo aquele que tem fé em Jesus (Rm
3,23-26).
Gostaria
logo de tranquilizar a todos: não tenho o intuito de fazer uma enésima pregação
sobre a justificação mediante a fé. Há um perigo em insistir unicamente sobre
este tema. Não é uma doutrina que Paulo nos apresenta, mas um evento, antes,
uma pessoa. Nós não somos salvos genericamente “pela graça”: somos salvos pela
graça de Cristo Jesus; não somos justificados genericamente “por
meio da fé”: somos justificados por meio da fé em Cristo Jesus.
Tudo mudou “por meio da redenção em Cristo Jesus”. O verdadeiro artigo com que
está em pé ou cai a Igreja (o famoso Articulum stantis edt cadentis
Ecclesiae) não é uma doutrina, mas uma pessoa.
Fico sem
palavras cada vez que releio esta parte da Carta aos Romanos. Após ter
descrito, com os tons que ouvimos, a situação desesperada da humanidade, o
Apóstolo tem a coragem de dizer que ela mudou radicalmente por causa do que
aconteceu poucos anos antes, em uma obscura parte do império romano, por obra
de um só homem, ainda por cima, morto em uma cruz! Apenas uma “ponta” do
Espírito Santo, um seu fulgor, podia dar a um homem a ousadia de crer e
proclamar esta coisa inaudita. Ainda mais que este mesmo homem outrora se
tornava “furioso” se alguém ousasse proclamar em sua presença uma coisa do
gênero. O diácono Estêvão pagou tal preço...
Em nós, o
choque é atenuado por vinte séculos de confirmações, mas pensemos sobre como
deviam soar as palavras do Apóstolo a pessoas cultas do tempo. Ele mesmo se
dava conta; por isso, sentiu a necessidade de dizer: “Eu não me envergonho do
evangelho” (Rm 1,16). Poder-se-ia, de fato, envergonhar-se dele. Não consigo
entender como historiadores honestos possam crer (como aconteceu por tanto
tempo) que Paulo tenha tirado esta sua certeza dos cultos helenísticos, ou não
sei de qual outra fonte. Quem teria imaginado, ou poderia humanamente imaginar,
algo do gênero?
Mas
voltemos ao nosso intuito específico, que é a evangelização. O que aprendemos
da palavra de Deus que acabamos de ouvir? Aos pagãos, Paulo não diz que o
remédio à sua idolatria está em voltar a interrogar o universo para das
criaturas reportar-se a Deus; aos judeus, não diz que o remédio está em voltar
a observar melhor a Lei de Moisés. O remédio não está no alto ou atrás; está
adiante, está em acolher “a redenção em Cristo Jesus”.
Paulo, para
dizer a verdade, não diz algo totalmente novo. Se fosse ele o autor desta
mensagem inaudita, teriam razão aqueles que dizem que o verdadeiro fundador do
cristianismo é Saulo de Tarso, não Jesus de Nazaré. Mas estão errados! Paulo
não faz outra coisa senão retomar, adaptando-o à situação do momento, o anúncio
inaugural da pregação de Jesus: “Cumpriu-se o tempo, e está próximo o Reino de
Deus. Convertei-vos e crede no Evangelho” (Mc 1,15). Em sua boca,
“convertei-vos” não queria dizer, como nos antigos profetas e em João Batista: “Voltai
atrás, observai a Lei e os mandamentos”; significa mais: “Dai um passo à
frente; entrai no Reino que gratuitamente veio em vosso meio! Crede no
Evangelho!”. Converter-se é crer. “A primeira conversão consiste em crer”,
escreveu Santo Tomás de Aquino: Prima conversio fit per fidem[2].
Nem o
discurso de Jesus, nem o de Paulo se detêm, naturalmente, neste ponto. Em sua
pregação, Jesus exporá o que comporta acolher o Reino e Paulo dedicará toda a
segunda parte da sua Carta a elencar as obras, ou as virtudes, que devem
caracterizar quem se tornou criatura nova. Ao querigma, faz seguir a parênese,
ao anúncio, a exortação. O importante é a ordem a ser seguida na vida e no
anúncio, de onde começar, pois, já dizia São Gregório Magno “não se chega à fé
partindo das virtudes, mas às virtudes partindo da fé”[3].
Toda iniciativa de evangelização que quisesse começar com reformar os costumes
da sociedade, antes de buscar mudar o coração das pessoas, é fadada a cair no
nada, ou, pior, na política.
Mas não é o
caso de insistir nem mesmo sobre isso, neste momento. Devemos, antes, colher o
ensinamento positivo do Apóstolo. O que diz a palavra de Deus a uma Igreja que
– mesmo ferida em si mesma e comprometida aos olhos do mundo – tem um suspiro
de esperança e quer retomar, com novo impulso, a sua missão evangelizadora? Diz
que é preciso recomeçar a partir da pessoa de Cristo, falar dele “oportuna e
inoportunamente”; jamais dar por certo, ou pressuposto, o discurso sobre ele.
Jesus não deve estar no pano de fundo, mas no coração de todo anúncio.
O mundo
secular faz de tudo (e infelizmente consegue!) para manter o nome de Jesus
longe, ou silenciado, em todo discurso sobre a Igreja. Nós devemos fazer de
tudo para mantê-lo sempre presente. Não para nos refugiarmos por detrás dele, mas
porque é ele a força e a vida da Igreja. No início da Evangelii
gaudium, lemos estas palavras:
Convido
todo o cristão, em qualquer lugar e situação que se encontre, a renovar hoje
mesmo o seu encontro pessoal com Jesus Cristo ou, pelo menos, a tomar a decisão
de se deixar encontrar por Ele, de O procurar dia a dia sem cessar. Não há
motivo para alguém poder pensar que este convite não lhe diz respeito.
Que eu
saiba, esta é a primeira vez que, em um documento oficial do Magistério,
aparece a expressão “encontro pessoal com Cristo”. Apesar da sua aparente
simplicidade, esta expressão contém uma novidade que devemos procurar entender.
Na pastoral
e na espiritualidade católica, eram familiares, no passado, outros modos de
conceber a nossa relação com Cristo. Falava-se de uma relação doutrinal,
que consistia em crer em Cristo; de uma relação sacramental, que se
realiza nos sacramentos; de uma relação eclesial, enquanto membros
do corpo de Cristo, que é a Igreja; falava-se também de uma relação
mística ou esponsal, reservada a algumas almas privilegiadas. Não se falava
– ou ao menos não era comum falar – de uma relação pessoal –
como entre um eu e um tu –, aberta a todo crente.
Durante os
cinco séculos que temos às costas – que impropriamente são chamados “da Contrarreforma”
–, a espiritualidade e a pastoral católica têm olhado com suspeita para este
modo de conceber a salvação. Via-se aí o perigo (de resto, totalmente o
contrário de remoto e hipotético) do subjetivismo, isto é, de conceber a fé e a
salvação como um fato individual, sem uma verdadeira relação com a Tradição e
com a fé do resto da Igreja. O multiplicar-se das correntes e das denominações
no mundo Protestante não fazia outra coisa senão reforçar esta convicção.
Entramos
agora, graças a Deus, em uma nova fase, na qual nos esforçamos em ver as
diferenças, não necessariamente como incompatíveis entre si e, portanto, a
serem combatidas, mas, até onde é possível, como riquezas a serem
compartilhadas. Neste novo clima, entende-se a exortação para haver uma
“relação pessoal com Cristo”. Este modo de conceber a fé nos parece, antes, o
único possível desde quando a fé não é mais um fato pressuposto que se absorve
quando crianças com a educação familiar e escolástica, mas é fruto de uma
decisão pessoal. O sucesso de uma missão não pode ser medido pelo número das
confissões ouvidas e das comunhões distribuídas, mas de quantas pessoas
passaram de ser cristãos de nome a cristãos reais, isto é, convictos e ativos
na comunidade.
Procuremos
entender em que consiste, concretamente, este famoso “encontro pessoal” com
Cristo. Eu digo que é como encontrar uma pessoa ao vivo, depois de tê-la
conhecido por anos apenas por fotografia. Pode-se conhecer livros sobre Jesus,
doutrinas, heresias sobre Jesus, conceitos sobre Jesus, mas não o conhecer vivo
e presente (insisto sobretudo sobre estes dois adjetivos: um Jesus ressuscitado
e vivo e um Jesus presente!). Para muitos, mesmo
batizados e crentes, Jesus é um personagem do passado, não uma pessoa viva no
presente.
Ajuda-nos a
entender a diferença aquilo que acontece no âmbito humano, quando se passa do
conhecer uma pessoa ao enamorar-se dela. Alguém pode conhecer tudo sobre uma
mulher ou um homem: como se chama, quantos anos tem, que estudos fez, a qual
família pertence... Depois, um dia acende uma fagulha e se enamora daquela
mulher ou daquele homem. Tudo muda. Quer estar com aquela pessoa, agradá-la,
tê-la para si, tem medo de desagradá-la e de não ser digno dela.
Como fazer
para que se acenda em muitos aquela fagulha em relação à pessoa de Jesus?
Ela não se acenderá em quem escuta a mensagem do Evangelho, se não se
acendeu antes – ao menos como desejo, como busca e como propósito – em quem o
proclama. Houve e há exceções; a palavra de Deus tem uma força própria e pode
agir, às vezes, mesmo se pronunciada por quem não a vive; mas é exceção.
Para
consolação e encorajamento de quantos trabalham institucionalmente no campo da
evangelização, gostaria de lhes dizer que nem tudo depende deles. Deles,
depende criar as condições para que se acenda aquela fagulha e se difunda. Mas
ela acende nas maneiras e nos momentos mais impensáveis. Na maioria dos casos
que conheci em minha vida, a descoberta de Cristo que mudou a vida tinha sido
ocasionada a partir do encontro com alguém que já tinha experimentado aquela
graça, da participação de um encontro, da escuta de um testemunho, de ter
experimentado a presença de Deus em um momento de grande sofrimento, e – não
posso omiti-lo, pois assim aconteceu também para mim – de ter recebido o
chamado batismo do Espírito.
Aqui se vê
a necessidade de designar sempre mais os leigos, homens e mulheres, para a
evangelização. Eles estão mais inseridos nas tramas da vida em que normalmente
se realizam aquelas circunstâncias. Também pela escassez de número, a nós, do
clero, torna-se mais fácil sermos pastores do que pescadores de almas: mais
fácil apascentar com as palavras e os sacramentos aqueles que vêm à Igreja, do
que partir ao alto-mar a pescar os distantes. Os leigos podem nos suprir na
tarefa de pescadores. Muitos deles descobriram o que significa conhecer Jesus
vivo e estão ansiosos para compartilhar com outros a sua descoberta.
Os
movimentos eclesiais, surgidos após o Concílio, foram para muitos o lugar em
que fizeram tal descoberta. Em sua homilia na Missa Crismal da Quinta-feira
Santa de 2012, a última do seu pontificado, Bento XVI afirmou: “Quem observa a
história do período pós-conciliar pode reconhecer a dinâmica da verdadeira
renovação, que frequentemente assumiu formas inesperadas em movimentos cheios
de vida e que tornam quase palpável a vivacidade inexaurível da santa Igreja, a
presença e a ação eficaz do Espírito Santo”. Junto com os bons frutos, alguns
desses movimentos produziram também frutos podres. É preciso recordar-se da
expressão: “Não jogue o bebê fora junto com a água do banho”.
Termino com
as palavras conclusivas do Itinerário da mente para Deus,
de São Boaventura, porque elas nos sugerem de onde começar para realizar, ou
renovar, a nossa “relação pessoal com Cristo” e nos tornarmos seus corajosos
anunciadores:
É este um
dom místico e secretíssimo – escreve – que ninguém conhece, senão quem o
recebe. Nem o recebe, senão quem o deseja. Nem o deseja, senão quem está
inflamado profundamente pelo fogo do Espírito Santo que Jesus Cristo enviou à
terra[4].
_______________________
Tradução de
Fr. Ricardo Farias, ofmcap
[1] Cf.
Agostinho, De natura et gratia, 22,24.
[2] Cf.
Tomás de Aquino, S.Th. I-IIae, q.113, a. 4.
[3] Cf.
Gregório Magno, Homilias sobre Ezequiel, II,7 (PL 76, 1018).
[4] Cf.
Boaventura de Bagnoregio, Itinerarium mentis in Deum, VII,4.
Fonte: https://www.vaticannews.va/pt/vaticano/news/2023-03/ii-pregacao-da-quaresma-2023.html
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