Imagem: A “Transfiguração”, de Raffaello Sanzio –
RV
Amados irmãos e irmãs!
A Quaresma é um novo começo, uma
estrada que leva a um destino seguro: a Páscoa de Ressurreição, a vitória de
Cristo sobre a morte. E este tempo não cessa de nos dirigir um forte convite à
conversão: o cristão é chamado a voltar para Deus «de todo o coração» (Jl 2,
12), não se contentando com uma vida medíocre, mas crescendo na amizade do
Senhor. Jesus é o amigo fiel que nunca nos abandona, pois, mesmo quando pecamos,
espera pacientemente pelo nosso regresso a Ele e, com esta espera, manifesta a
sua vontade de perdão (cf. Homilia na Santa Missa, 8 de janeiro de 2016).
A Quaresma é o momento favorável para intensificarmos a vida espiritual
através dos meios santos que a Igreja nos propõe: o jejum, a oração e a esmola.
Na base de tudo isto, porém, está a Palavra de Deus, que somos convidados a
ouvir e meditar com maior assiduidade neste tempo. Aqui queria deter-me, em
particular, na parábola do homem rico e do pobre Lázaro (cf. Lc 16, 19-31).
Deixemo-nos inspirar por esta página tão significativa, que nos dá a chave para
compreender como temos de agir para alcançarmos a verdadeira felicidade e a vida
eterna, incitando-nos a uma sincera conversão.
1. O outro é um dom
A parábola inicia com a apresentação
dos dois personagens principais, mas quem aparece descrito de forma mais
detalhada é o pobre: encontra-se numa condição desesperada e sem forças para se
solevar, jaz à porta do rico na esperança de comer as migalhas que caem da mesa
dele, tem o corpo coberto de chagas, que os cães vêm lamber (cf. vv. 20-21).
Enfim, o quadro é sombrio, com o homem degradado e humilhado.
A cena revela-se ainda mais dramática, quando se considera que o pobre se
chama Lázaro, um nome muito promissor pois significa, literalmente, «Deus
ajuda». Não se trata duma pessoa anónima; antes, tem traços muito concretos e
aparece como um indivíduo a quem podemos atribuir uma história pessoal. Enquanto
Lázaro é como que invisível para o rico, a nossos olhos aparece como um ser
conhecido e quase de família, torna-se um rosto; e, como tal, é um dom, uma
riqueza inestimável, um ser querido, amado, recordado por Deus, apesar da sua
condição concreta ser a duma escória humana (cf. Homilia na Santa Missa, 8 de
janeiro de 2016).
Lázaro ensina-nos que o outro é um dom. A justa relação com as pessoas
consiste em reconhecer, com gratidão, o seu valor. O próprio pobre à porta do
rico não é um empecilho fastidioso, mas um apelo a converter-se e mudar de vida.
O primeiro convite que nos faz esta parábola é o de abrir a porta do nosso
coração ao outro, porque cada pessoa é um dom, seja ela o nosso vizinho ou o
pobre desconhecido. A Quaresma é um tempo propício para abrir a porta a cada
necessitado e nele reconhecer o rosto de Cristo. Cada um de nós encontra-o no
próprio caminho. Cada vida que se cruza connosco é um dom e merece aceitação,
respeito, amor. A Palavra de Deus ajuda-nos a abrir os olhos para acolher a vida
e amá-la, sobretudo quando é frágil. Mas, para se poder fazer isto, é necessário
tomar a sério também aquilo que o Evangelho nos revela a propósito do homem
rico.
2. O pecado cega-nos
A parábola põe em evidência, sem
piedade, as contradições em que vive o rico (cf. v. 19). Este personagem, ao
contrário do pobre Lázaro, não tem um nome, é qualificado apenas como «rico». A
sua opulência manifesta-se nas roupas, de um luxo exagerado, que usa. De facto,
a púrpura era muito apreciada, mais do que a prata e o ouro, e por isso se
reservava para os deuses (cf. Jr 10, 9) e os reis (cf. Jz 8, 26). O linho fino
era um linho especial que ajudava a conferir à posição da pessoa um caráter
quase sagrado. Assim, a riqueza deste homem é excessiva, inclusive porque
exibida habitualmente: «Fazia todos os dias esplêndidos banquetes» (v. 19).
Entrevê-se nele, dramaticamente, a corrupção do pecado, que se realiza em três
momentos sucessivos: o amor ao dinheiro, a vaidade e a soberba (cf. Homilia na
Santa Missa, 20 de setembro de 2013).
O apóstolo Paulo diz que «a raiz de todos os males é a ganância do dinheiro»
(1 Tm 6, 10). Esta é o motivo principal da corrupção e uma fonte de invejas,
contendas e suspeitas. O dinheiro pode chegar a dominar-nos até ao ponto de se
tornar um ídolo tirânico (cf. Exort. ap. Evangelii gaudium, 55). Em vez de
instrumento ao nosso dispor para fazer o bem e exercer a solidariedade com os
outros, o dinheiro pode-nos subjugar, a nós e ao mundo inteiro, numa lógica
egoísta que não deixa espaço ao amor e dificulta a paz.
Depois, a parábola mostra-nos que a ganância do rico fá-lo vaidoso. A sua
personalidade vive de aparências, fazendo ver aos outros aquilo que se pode
permitir. Mas a aparência serve de máscara para o seu vazio interior. A sua vida
está prisioneira da exterioridade, da dimensão mais superficial e efémera da
existência (cf. ibid., 62).
O degrau mais baixo desta deterioração moral é a soberba. O homem veste-se
como se fosse um rei, simula a posição dum deus, esquecendo-se que é um simples
mortal. Para o homem corrompido pelo amor das riquezas, nada mais existe além do
próprio eu e, por isso, as pessoas que o rodeiam não caiem sob a alçada do seu
olhar. Assim o fruto do apego ao dinheiro é uma espécie de cegueira: o rico não
vê o pobre esfomeado, chagado e prostrado na sua humilhação.
Olhando para esta figura, compreende-se por que motivo o Evangelho é tão
claro ao condenar o amor ao dinheiro: «Ninguém pode servir a dois senhores: ou
não gostará de um deles e estimará o outro, ou se dedicará a um e desprezará o
outro. Não podeis servir a Deus e ao dinheiro» (Mt 6, 24).
3. A Palavra é um dom
O Evangelho do homem rico e do
pobre Lázaro ajuda a prepararmo-nos bem para a Páscoa que se aproxima. A
liturgia de Quarta-Feira de Cinzas convida-nos a viver uma experiência
semelhante à que faz de forma tão dramática o rico. Quando impõe as cinzas sobre
a cabeça, o sacerdote repete estas palavras: «Lembra-te, homem, que és pó da
terra e à terra hás de voltar». De facto, tanto o rico como o pobre morrem, e a
parte principal da parábola desenrola-se no Além. Dum momento para o outro, os
dois personagens descobrem que nós «nada trouxemos ao mundo e nada podemos levar
dele» (1 Tm 6, 7).
Também o nosso olhar se abre para o Além, onde o rico tece um longo diálogo
com Abraão, a quem trata por «pai» (Lc 16, 24.27), dando mostras de fazer parte
do povo de Deus. Este detalhe torna ainda mais contraditória a sua vida, porque
até agora nada se disse da sua relação com Deus. Com efeito, na sua vida, não
havia lugar para Deus, sendo ele mesmo o seu único deus.
Só no meio dos tormentos do Além é que o rico reconhece Lázaro e queria que o
pobre aliviasse os seus sofrimentos com um pouco de água. Os gestos solicitados
a Lázaro são semelhantes aos que o rico poderia ter feito, mas nunca fez.
Abraão, porém, explica-lhe: «Recebeste os teus bens na vida, enquanto Lázaro
recebeu somente males. Agora, ele é consolado, enquanto tu és atormentado» (v.
25). No Além, restabelece-se uma certa equidade, e os males da vida são
contrabalançados pelo bem.
Mas a parábola continua, apresentando uma mensagem para todos os cristãos. De
facto o rico, que ainda tem irmãos vivos, pede a Abraão que mande Lázaro
avisá-los; mas Abraão respondeu: «Têm Moisés e os Profetas; que os oiçam» (v.
29). E, à sucessiva objeção do rico, acrescenta: «Se não dão ouvidos a Moisés e
aos Profetas, tão-pouco se deixarão convencer, se alguém ressuscitar dentre os
mortos» (v. 31).
Deste modo se patenteia o verdadeiro problema do rico: a raiz dos seus males
é não dar ouvidos à Palavra de Deus; isto levou-o a deixar de amar a Deus e,
consequentemente, a desprezar o próximo. A Palavra de Deus é uma força viva,
capaz de suscitar a conversão no coração dos homens e orientar de novo a pessoa
para Deus. Fechar o coração ao dom de Deus que fala, tem como consequência
fechar o coração ao dom do irmão.
Amados irmãos e irmãs, a Quaresma é o tempo favorável para nos renovarmos,
encontrando Cristo vivo na sua Palavra, nos Sacramentos e no próximo. O Senhor –
que, nos quarenta dias passados no deserto, venceu as ciladas do Tentador –
indica-nos o caminho a seguir. Que o Espírito Santo nos guie na realização dum
verdadeiro caminho de conversão, para redescobrirmos o dom da Palavra de Deus,
sermos purificados do pecado que nos cega e servirmos Cristo presente nos irmãos
necessitados. Encorajo todos os fiéis a expressar esta renovação espiritual,
inclusive participando nas Campanhas de Quaresma que muitos organismos
eclesiais, em várias partes do mundo, promovem para fazer crescer a cultura do
encontro na única família humana. Rezemos uns pelos outros para que,
participando na vitória de Cristo, saibamos abrir as nossas portas ao frágil e
ao pobre. Então poderemos viver e testemunhar em plenitude a alegria da
Páscoa.
Vaticano, 18 de outubro de 2016.
Festa do Evangelista São
Lucas
FRANCISCO
Fonte: Rádio Vaticano